¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sexta-feira, março 30, 2012
 
UMA PESQUISA FAJUTA


Cerca de 75% dos brasileiros jamais pisaram em uma biblioteca, diz pesquisa do Instituto Pró-Livro, realizada ano passado, que se pretende o mais completo estudo sobre comportamento do leitor. Que cerca de 75% dos brasileiros jamais tenham pisado em uma biblioteca, vá lá. Mas isto nada tem a ver com o comportamento do leitor.

A pesquisa fala de bibliotecas públicas. Sem ir mais longe, eu, que sou leitor inveterado, não freqüento bibliotecas públicas há uns bons trinta anos. Mas freqüento a minha todos os dias. Além do mais, o IPL parece ignorar os tempos em que vivemos. Biblioteca, hoje, pode estar em um computador, tablet ou pendrive.

Não gosto de bibliotecas por razão da mais simples. Meu modo de apoderar-me de um livro é sublinhar. Como não posso sublinhar livros de biblioteca alheias, prefiro freqüentar a minha. Neste sentido, não gosto nem de livro emprestado. Se o livro me interessa, trato de comprá-lo e fico com ele. Da mesma forma, não gosto muito de emprestar livros. Se o livro é extraviado, perdi não um livro, mas uma leitura.

Uma biblioteca foi fundamental em minha juventude, a Municipal, de Dom Pedrito, instalada na época no prédio da Prefeitura. Havia só uma livrariazinha na cidade, a do Naziazeno, e nela não chegavam os clássicos. Foi lá que me iniciei, em meus 14 ou 15 anos, em Platão, Cervantes, Descartes, Montesquieu. Para desagrado dos padres oblatos que administravam o Colégio Nossa Senhora do Patrocínio. Eles preferiam que lêssemos menos. Autores que nos faltavam, mandávamos buscar em Rivera ou Montevidéu. Foi como tomei contato com José Ingenieros, para desespero do clero local.

Como gosto de ler ao lado de um bom vinho, minhas salas de leitura preferidas são os bares. Foi hábito que adquiri em Paris. Desde os primórdios da Sorbonne, os cafés do Quartier Latin eram a sala de leitura ideal dos estudantes, pois tinham calefação. O hábito perdura até hoje e às vezes entramos em bares onde acabamos falando baixinho, para não atrapalhar a leitura dos clientes. Este hábito está disseminado por toda Europa. Em Viena, estive em um café que já teve trezentos jornais à disposição de seus habitués. Quando estive lá, teria uns cinqüenta. O ambiente é até um pouco escuro. Mas as mesas dispõem de lâmpadas baixas, adequadas à leitura. Foi lá também - acho - onde encontrei um bar que oferecia a seus clientes uma razoável biblioteca.

Para a presidente do IPL, Karine Pansa, os dados mostram que o desafio, em geral, não é mais possibilitar o acesso ao equipamento, mas fazer com que as pessoas o utilizem. "O maior desafio é transformar as bibliotecas em locais agradáveis, onde as pessoas gostam de estar, com prazer. Não só para estudar." Boa idéia. Para começar, poderiam contratar garçons e oferecer uma boa carta de vinhos.

A biblioteca é um lugar até o qual devo deslocar-me para ler. Ora, prefiro ler sem sair de onde estou. Há livros, é claro, que só lá existem. Mas estes livros são buscados por pesquisadores, não pelo leitor comum.

A última biblioteca que freqüentei foi a Bibliothèque Nationale de Paris, BeNa para os íntimos. Foi no final dos 70. Ocorre que os livros de minha pesquisa não mais existiam em livrarias. Depois disso, diria que jamais entrei em tais instituições. A não ser como turista. Há muita biblioteca na Europa que não é biblioteca, mas museu. Há dois anos, visitei a Old Library, em Dublim. Linda, solene, vetusta, repleta de incunábulos. Nela, pude contemplar as páginas com iluminuras do Book of Kells, uma das mais antigas versões da Bíblia. Mas não vi nenhum leitor em suas salas. Só turistas passeando por seus corredores. Como quem vai a uma catedral. Não para rezar, mas para admirar sua arquitetura e obras de arte.

Nos anos 80, fui convidado pelo governo sueco para passar duas semanas no país. Lá, visitei a Carolina Rediviva, a biblioteca de Uppsala, onde li inclusive manuscritos em sueco de José Bonifácio de Andrada e Silva. Ah! Tive também a honra de visitar a casa onde nasceu Karin Boye, de quem eu havia traduzido Kalocain.

Guiado pela mulher do diretor da biblioteca, fui introduzido no Santo dos Santos, isto é, a sala onde está a Bíblia de Prata - o Codex Argenteus – assim chamado por ter sido escrito com tinta prateada. É o texto mais conhecido em gótico, língua germânica já extinta. Não chega a ser uma bíblia, mas um evangelário, ou seja, um livro contendo partes dos quatro evangelhos. O nome dos evangelistas e as três primeiras linhas de cada evangelho são ornadas com letras de ouro. É certamente o livro mais raro que já vi em minha vida – e já vi muitos, inclusive a Gramática Castellana, de Nebrija. Devo ter passado por quatro ou cinco grades trancadas a sete chaves para chegar até a Bíblia de Prata. Mas não era disto que queria falar.

Uppsala é uma cidade universitária e teria na época 185 mil habitantes. Minha guia tinha uma queixa. Que o governo liberava verbas para aumentar as dependências da biblioteca, mas era avaro no que dizia respeito ao acervo. Quantos livros tem aqui? – perguntei. Nosso acervo é pequeno – me respondeu a moça, desolada -. Temos apenas quatro milhões de exemplares.

Em meus dias de Madri, a rigor teria de apelar à Biblioteca Nacional, no Paseo de Recoletos. Acontece que para chegar lá há alguns acidentes de percurso. Do lado de cá do Paseo, estão dois dos mais antigos e lindos cafés de Madri, o Gijón e o El Espejo. Nunca consegui atravessar a avenida. Mas tenho muitas horas de leitura naqueles dois cafés. Sem falar que a espera entre a comunicação e o recebimento da obra exigia pelo menos uma hora. Sem que eu pudesse entrar com algum livro ou jornal para ler enquanto esperava. Ora, não consigo ficar uma hora olhando o vazio.

Segundo a pesquisa do IPL, vão à biblioteca freqüentemente apenas 8% dos brasileiros, enquanto 17% o fazem de vez em quando. Isso não quer dizer que brasileiro não leia. Vão à biblioteca pesquisadores... e pessoas que não têm o hábito da leitura. Quem gosta de ler monta a sua. Por outro lado, se há livros que você encontra só nas bibliotecas, há outros que só existem em livrarias.

Ainda segundo o mesmo estudo, o brasileiro lê em média quatro livros por ano e apenas metade da população pode ser considerada leitora. A Bíblia aparece em primeiro lugar entre os gêneros preferidos – como se a Bíblia fosse um gênero – seguida de livros didáticos, romances, livros religiosos, contos, literatura infantil, entre outros.

Se a escassa freqüência às bibliotecas não significa que brasileiro leia pouco, isto tampouco quer dizer que brasileiro leia. Nem mesmo quatro livros por ano. Bíblia não conta, é imposição de igrejas e seitas. Pelo que conheço desta gente, geralmente só usam a Bíblia para portá-la sob o sovaco. Ou para papaguear versículos como um mantra. Isto não é ler.

Livro didático muito menos. É instrumento de ensino e imposição das escolas. Ler, a meu ver, é buscar leitura sem que a leitura seja imposta. Assim sendo, é bastante provável que um brasileiro não leia nem mesmo quatro livros por ano. Entre estes leitores, devemos incluir os de Paulo Coelho, padre Marcelo, Gabriel Chalita. Melhor não tivessem aprendido a ler.

A pesquisa levou em conta apenas os livros em papel. Por mais que editores, distribuidores e livreiros não gostem desta idéia, ebook também é livro. E as bibliotecas digitais, portáteis e o mais das vezes gratuitas, só têm aumentado nos dias que correm. O IPL ignorou o século em que vivemos.

Fora da leitura não há salvação, costumo afirmar. Não é preciso fazer pesquisa para concluir que brasileiros lêem pouco ou quase nada. Basta ver os governantes que elegem ou os ídolos que cultuam.