¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quinta-feira, agosto 30, 2012
 
UM NOVO IANOBLEFE?


No dia 19 de agosto de 1993, uma manchete invadiu as páginas de todos os jornais do país:

IANOMÂMIS SÃO CHACINADOS EM RORAIMA

Falou-se inicialmente em 19 mortos. Dia seguinte, eram 40. Logo depois, chegaram a 73. Os assassinos, é claro, eram os garimpeiros. No decorrer dos dias, como nenhum cadáver havia sido achado, o número de chacinados foi diminuindo. Foi fixado finalmente em 16. A única prova da chacina foi... um dente, encontrado pela Polícia Federal e exibido em grandes fotos pela imprensa, na ponta do dedo de um policial. Em verdade, não foi encontrado um só cadáver.

No dia seguinte ao "massacre", ficou clara a intenção da farsa: "O presidente Itamar Franco anunciou ontem a decisão do governo em homologar a demarcação de uma área de 4.900 hectares no sul do Pará, habitada por 600 índios caiapós, em duas aldeias. O anúncio foi feito pouco mais de 24 horas após a divulgação da chacina dos ianomâmis em Roraima".

Relato toda essa farsa em Ianoblefe - o jornalismo como ficção. O livro foi recusado por cerca de vinte editoras. "Não podemos nos indispor contra todos os jornais do país", resumiu um editor. Mas foi aceito pela Ebooksbrasil, tocada por Teotonio Simões: http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/ianoblefe.html. Recomendo.

Dia 19 de dezembro de 1996, o juiz federal Itagiba Catta Preta, de Boa Vista, Roraima, fechou com chave de ouro a ficção alimentada durante três anos pela imprensa: condenou a vinte anos de prisão cinco garimpeiros, por genocídio praticado contra ianomâmis em 93. Dois garimpeiros responderam o processo em liberdade e três à revelia.

Cadáveres, nenhum. Mas o juiz Catta Preta não tem dúvidas de que houve o massacre. Como prova do crime, aceitou laudos de antropólogos sobre os hábitos culturais dos ianomâmis — a história das cinzas, formulada pelo antropólogo Bruce Albert —, além do depoimento de sobreviventes. “Pelos depoimentos colhidos, não tenho dúvida de que pelo menos doze índios foram mortos”.

Sem cadáver não há crime, diz a boa doutrina jurídica. Os garimpeiros foram condenados por um crime que não houve. Pior ainda, pelo assassinato de índios de uma tribo que não existe. Naquele dia, em Roraima, foi atada com nó de tope a maior farsa jornalística, política e jurídica jamais ocorrida no Brasil, com sérias conseqüências para a integridade territorial do país.

A imprensa registrou alguns sinais de violência na aldeia - venezuelana - onde teria ocorrido o massacre, várias panelas perfuradas por tiros. E só. Teríamos então um panelocídio, figura que jamais foi contemplada por qualquer código penal. Fui o único jornalista no Brasil a denunciar a farsa. Sete entidades ligadas a indígenas, em representação ao MPF, pediram cinco anos de prisão para este que vos escreve. Claro que não levaram.

Os ianomâmis brasileiros são uma criação de Cláudia Andujar – fotógrafa que ora é suíça, ora é romena. Se o antropólogo Napoleon Chagnon constatou a existência de uma tribo de ianomâmis na Venezuela, a extensão desta etnia a territórios brasileiros está longe de ser uma evidência. O blefe do massacre de ianomâmis em 93 repousa sobre um blefe anterior, ou seja, a existência de uma tribo ianomâmi no Brasil. Quem faz esta denúncia é o coronel Carlos Alberto Lima Menna Barreto, em A Farsa Ianomâmi (Rio, Biblioteca do Exército Editora, 1995). Em função de seu ofício, o militar gaúcho trabalhou em Roraima desde 1969, onde teve estreito contato com a população da região e jamais ouviu falar em ianomâmis, palavra que invade a imprensa brasileira e internacional somente a partir de 1973.

Segundo Menna Barreto, Manoel da Gama Lobo D’Almada, Alexandre Rodrigues Ferreira, os irmãos Richard e Robert Schomburgk, Philip von Martius, Alexander von Humboldt, João Barbosa Rodrigues, Henri Coudreau, Jahn Chaffanjon, Francisco Xavier de Araújo, Walter Brett, Theodor Koch-Grünberg, Hamilton Rice, Jacques Ourique, Cândido Rondon e milhares de exploradores anônimos que cruzaram, antes disso, os vales do Uraricoera e do Orenoco, jamais identificaram quaisquer índios com esse nome”.

Tampouco o leitor que hoje tenha 40 ou 50 anos jamais terá ouvido falar, em seus bancos escolares, da tal de tribo, que recebeu um território equivalente a três Bélgicas, como sendo suas “terras imemoriais”. Imemoriais desde quando? Desde há quatro décadas?

Claudia Andujar, em verdade, ianomamizou uma babel de tribos que pouco ou nada tinham a ver entre si. A ficção tomou força na imprensa internacional e os “ianomâmis” passaram a “existir”. Quando Brasília se deu conta de que o reconhecimento de grupos indígenas requeria capacitação em Antropologia, o mal já estava feito: a fotógrafa havia criado uma nação. Cabe lembrar que a profissão de antropólogo, como a de prostituta ou psicanalista, não estão regulamentadas por lei no Brasil.

Mesmo assim, em 1992, por um punhado de linhas na mídia internacional, o então presidente Fernando Collor de Mello avalizou a ficção de Andujar, entregando três Bélgicas a dez mil índios (ou talvez menos da metade disso), que só passaram a ser ianomâmis a partir de 1973. Milagre do jornalismo eletrônico: jamais se construiu uma nação em tão pouco tempo.

Li ontem no jornalismo on line despacho da AFP, segundo o qual a Horonami Organización Yanomami (HOY), organização que reúne indígenas ianomâmi, denunciou a matança em julho passado de cerca de 80 membros desta etnia pelas mãos de mineiros ilegais brasileiros em uma zona florestal do sul da Venezuela. Quem informa é Luis Ahiwei, secretário-executivo da ONG.

"No dia 5 de julho, os garimpeiros queimaram o shabono (cabana) onde aproximadamente 80 pessoas moravam", contou Ahiwei. Segundo o ativista, com um helicóptero os mineiros "de repente se posicionaram em cima do shabono e soaram disparos e ocorreram explosões por toda a comunidade" Irotatheri, localizada no afastado setor Momoi do Estado Amazonas, fronteiriço com o Brasil.

"A comunidade foi massacrada e apenas três indígenas sobreviveram, que encontraram os corpos depois de voltarem de uma excursão de caça, afirmou. "O conflito se originou dias antes, quando os mineiros levaram uma mulher (ianomâmi) e os indígenas a resgataram. Por isso os mineiros se armaram", afirmou Ahiwei.

Curioso que, tendo o massacre ocorrido há quase dois meses, só agora foi anunciado. Segundo a denúncia do ativista, os oitenta ianomâmis foram queimados. Muito bem. Onde estão os oitenta cadáveres, ou pelo menos as fotos dos oitenta cadáveres? Os ianomâmis massacrados em 93 – que eram 19, se transformaram em 40 e chegaram a 73, para logo voltar a serem 19, sem que nenhum cadáver fosse descoberto – também foram queimados.

Para explicar a inexistência de cadáveres no "masssacre" de 93, foi chamado de Paris o antropólogo Bruce Albert, que defendeu tese sobre os ianomâmis na universidade de Nanterre, intitulada Temps de sang, temps de cendres. Ou seja: tempo de sangue, tempo de cinzas. Para o antropólogo, não existiam vestígios do massacre porque os ianomâmis costumavam queimar seus mortos e suas crianças comiam as cinzas com mingau de banana:

"Nas grandes cerimônias funerárias intercomunitárias que irão organizar em homenagem aos mortos, as cinzas dos adultos serão enterradas junto às fogueiras domésticas de seus parentes e as das crianças serão tomadas com mingau de banana. Nessa ocasião, as cabaças, cestas e todos os objetos que pertenciam aos mortos serão queimados ou destruídos.

"A destruição dos pertences dos mortos, obliteração de seus nomes pessoais e o enterramento ou ingestão de suas cinzas nos rituais funerários dos ianomâmis têm por objetivo garantir que o espectro possa viajar definitivamente para o mundo dos mortos "nas costas do Céu" sem a possibilidade de voltar e atormentar os vivos. Para que isto aconteça, é necessário que estes comemorem os seus mortos até que todas as cinzas acabem, durante sucessivas cerimônias mortuárias.

"É por isso que o povo de Haximu teve que resgatar os despojos de seus mortos, mesmo sob a forte ameaça de ataques garimpeiros. Não fazê-lo seria condenar os espectros a errar entre dois mundos, assombrando os vivos com uma interminável melancolia pior que a própria morte.

"O seu luto durará até as cinzas terminarem, quando então voltarão à normalidade. Mesmo assim, nunca esquecerão que os brancos são capazes de esquartejar mulheres e crianças, "como espíritos comedores de gente".

O fecho de ouro do soneto bem poderia terminar com aquele C.Q.D. — Como Queríamos Demonstrar — que dava um nó de tope nas demonstrações de teoremas na escola dos anos 60. Não há cadáveres porque foram reduzidos a cinzas. As cinzas não podem ser examinadas porque são destruídas em ritos funerários. E os assassinos — ou seja, os garimpeiros em geral — devem ser impedidos de entrar em "território ianomâmi", aquelas três Bélgicas inteiras entregues a dez mil bugres por força de pressões internacionais.

O denunciante do massacre em Irotatheri ainda não exibiu cadáveres. A história soa inverossímil. Por que garimpeiros matariam oitenta índios, quando tal morticínio seria uma óbvia condenação a todos eles? Onde estão os cadáveres? O massacre ocorreu há quase dois meses, tempo mais que suficiente para produzir fotos.

Quero cadáveres. Sem cadáveres, me reservo o direito à dúvida. Ou os ianomâmis dos shabonos de Irotatheri também costumam comer as cinzas de seus ancestrais com mingau de banana?