¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quarta-feira, novembro 21, 2012
 
VEJA VIRA MORALISTA


A última Veja não resistiu ao jornalismo marrom e deu sua capa à prostitutazinha catarinense que fez leilão de sua virgindade. Até aí, nada surpreendente, a revista está gostando cada vez mais de atrair o populacho. Veja raramente comenta um filme ou livro que preste. Comenta o que o povão gosta. É direito seu. Mas o que é difícil de engolir é a pergunta retórica que se faz a mais importante revista do país. Será que estamos virando uma sociedade em que tudo se compra?

Santa ingenuidade! Tudo sempre foi comprável neste país, desde o corpo de uma mulher aos votos de um congressista. Para o redator, até parece que vivemos em uma sociedade onde sempre vigeu a ética. A indignação da revista teria talvez algum sentido se a prostituição fosse crime no Brasil. Não é. O que parece chocar no caso é o fato de a menina ter vendido suas primícias. Mas se é normal vender o corpo, por que não vendê-lo mais caro? Com um valor agregado, o não-uso. Se é que não foi usado. Não há como conferir.

“O mercado é a melhor ferramenta para criar e distribuir riquezas, mas há um enorme perigo em acreditar que se possa pôr um preço em tudo. Valores familiares, ideais e senso cívico são inegociáveis” – afirma a reportagem. Veja de repente virou moralista.

Desde quando valores familiares, ideais e senso cívico são inegociáveis? São perfeitamente negociáveis, tanto que estão sendo negociados. A membraninha da moça foi avaliada em 1,6 milhão de reais. Ora, milhões de meninas devem estar sonhando com uma proposta destas. Está estipulado que a contrapartida deve durar uma hora. Só mesmo um Maluf ou Zé Dirceu para faturar tanto em tão pouco tempo. Sem falar que a moça não prejudica o erário nem gera leis espúrias.

Veja aponta, sem ousar afirmar claramente, para a imoralidade da prostituição. Ora, ética depende de cada um. Se a lei é coercitiva, a moral não o é. Cada um tem a sua. Pode ferir certos setores da sociedade, mas crime não é.

Curiosamente, a decisão da moça de vender seu hímen tem sido vista pela imprensa como um direito seu, jamais como prostituição. Que é um direito dela, disso não resta dúvidas. Como tampouco restam dúvidas de que é prostituição. Não que eu tenha restrições ao ofício. Mas as coisas devem ser chamadas pelo nome.

Quem não gosta de um milhão e meio de uma tacada só? No que a mim diz respeito, depende. Se alguém me desse tal bolada para promover um bom livro, eu aceitaria prazerosamente. Mas nutro um sonho. Irrealizável, é claro. Adoraria que uma agência me oferecesse não um, mas cinco milhões de reais, para dizer uma palavrinha louvando a Pepsi. Eu teria sumo prazer em dizer não.

Princípios é para quem os tem. Antigamente, falava-se em um “homem de princípios”. As gerações novas certamente não conhecem a expressão. Adelante! Prostituição é vender o corpo? Quantas mulheres não o vendem, ao leiloá-lo a eventuais maridos? O mundo está cheio de mulheres em leilão, dispostas a entregar-se a quem paga mais. Só que não se vendem no varejo. Mas por atacado e a um só cliente. O amor sublime amor é coisa dos tempos das cruzadas.

Tudo depende de assessoria de imprensa. Quem era Marilyn Monroe senão uma vagabundinha que se entregava aos homens do poder? Alguém acha que Jaqueline Kennedy casou com Onassis por seus belos olhos? Ocorre que no mundo das artes e da política tudo é permissível. E tudo se transfigura numa aura de liberalismo e sofisticação.

O insólito no caso da catarinense é o preço. Insólito também é o gesto do cliente. É preciso ser muito pobre de espírito – e rico em dinheiro – para pagar tal preço por um reles capricho. E com regras definidas. Como em qualquer puta de rua, não pode beijar na boca. Nem tentar outras modalidades que não o papai-mamãe. Haja panacas neste mundo. Se eu pago um milhão e meio, quero tudo, ora bolas. Além do mais, a moça está inflacionando o preço dos hímens. Virgens se consegue por muito menos, nas boas casas do ramo.

Veja apela a Kant para analisar o caso da catarinense. “Um pensador moral como Kant discorda. Trocar sexo por dinheiro é degradante para ambos os parceiros, pois fere a dignidade humana. ‘O homem não pode dispor de si próprio como se fosse uma coisa; ele não é sua propriedade’”.

Ou o redator quis matar um mosquito com um canhão, ou quis demonstrar erudição. Voltamos à batida e obsoleta noção de coisificação do ser humano, muito em voga nos anos 70, por obra das feministas. O homem toda ora vende seu corpo, seja para um banco, uma loja, enfim, uma empresa qualquer. Neste sentido, a prostituição tem até uma vantagem. Enquanto a mulher cede seu corpo, seu espírito permanece livre.

A revista chama o “filósofo” Michael Sandel, estrela em Harvard, cujo livro O que o Dinheiro Não Compra discute os limites éticos do mercado. Sandel disse à Veja que os casos de Ingrid Migliorini e do mensalão são exemplos da aplicação da lógica de mercado em domínios em que ela deveria ficar ausente.

O “filósofo” está confundindo as coisas. A venda do hímen da catarinense pode ser uma transgressão ética, pelo menos para alguns. A compra de votos é crime.

Nestes dias que correm, a reportagem de Veja parece mais os conselhos de uma tia velha, daquelas que ainda acreditam em valores como virgindade e moral familiar.