¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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terça-feira, abril 30, 2013
 
SOBRE MINHAS OJERIZAS


Pois, Rodrigo, não é que eu vista a roupa de homem comum. Sou um homem comum, inclusive quando leio bons livros e escuto boa música, afinal isto também faz parte da vida do homem comum. Sou homem comum, mas tenho minhas manias. Ou meus princípios, como quisermos.

Minha infância está tomada por Disney. Tenho centenas de horas de leitura de Pato Donald, Mickey, Pateta, Tio Patinhas. Foram revistinhas que me ajudaram no aprendizado da leitura. Aliás, diria que estão na base do aprendizado de todo brasileiro que hoje tenha mais de 60 anos. Ler publicações da Disney quando se é criança nada tem de vergonhoso. Nem mesmo quando adolescente. E mesmo se você, adulto, quiser dar uma repassada nas revistinhas de seus dias de criança, nada demais. Para bom leitor, toda leitura sempre tem sentido. Escrevia há pouco um dos participantes do debate:

- Acredito que uma das qualidades essenciais a um intelectual (ou pelo menos a quem se pretende) seja a capacidade de compreender e refletir sobre as inquietações de seu tempo, bem como ter a sensibilidade necessária para estabelecer relações entre as diferentes manifestações culturais. Quem disse que não é possível escutar ecos de um Goethe ou Kafka em meio às agruras existenciais do Batman ou Hulk?!

Sem dúvida alguma. É o casco da ferradura quando bate na calçada, como dizia Agripino Grieco. São inserções de roteiristas que se pretendem hábeis e querem dar algum verniz de erudição a suas historietas anódinas. Mas Batman ou Hulk não são os foruns adequados para debatermos inquietações de Goethe ou Kafka.

Vou mais longe: claro que se pode fazer uma reflexão inteligente a partir dessas historietas. Bem ou mal, elas refletem idiossincrasias da época. Posso analisar comportamentos da classe média americana a partir do Tio Patinhas ou Pato Donald. Como também a partir dos super-heróis. Ou de qualquer outra historieta ou filme bobo. Já Disneylândia é outra coisa.

Disneylândia é um chamado de consumo, quase um atentado à infância do país. Há escolas que organizam excursões aos parques da Disney e ai da criança que não for. Se sentirá diminuída ante os que foram. Os pais sabem disso e, mesmo que tenham poucas posses, fazem das tripas coração para mandar o rebento aos States. Se você paga cinco ou dez reais por uma revistinha, Disneylândia é mais salgado.

Sim, tenho filha. Poderia morrer chorando, eu jamais a levaria lá. Sou da época em que filhos não mandavam em casa. Se os pais hoje são escravos de seus rebentos, jamais participei nem participo desta filosofia. Ofereceria à minha filha o mundo todo. Jamais a Disneylândia. Isso sem falar em outras manias ianques que abomino. Meus pés jamais pisarão parques temáticos. Há muita coisa linda no mundo fora do roteiro das multidões.

Sou fanzoca de Asterix, que considero literatura e das boas. Em minha biblioteca, ao lado de Tomás de Aquino e Casanova, estão as “obras completas” de Goscinny e Uderzo. Quando em Paris, pensei ir à inauguração do Parc Axterix, em Oise. Pelo que sabia então, até suas ruelas exalavam odores de comida, para estimular o apetite dos visitantes. Recurso besta, mas vá lá. Foi quando soube que era proibido consumir álcool no parque. Querem então que eu, estando na França, coma sem beber vinho? Não fui. Estupidez tem limite e não tenho paciência com coisas estúpidas.

Já viajei por países onde o álcool é proibido. Se é proibido, não serei eu quem desrespeitará a legislação local. Mas na França álcool não é proibido. Enfim, diria que não perdi nada. Literatura é uma coisa e pode ser consumida em casa. Um parque não traduzirá o encanto da literatura.

Desde que me entendo por gente, sou hostil ao que atrai milhões. Inteligência é moeda rara e não existem no mundo milhões de pessoas inteligentes. Daí minha ojeriza a best-sellers e shows que atraem multidões. A multidão máxima que suporto é a de uma sala de ópera. Mais do que isso, espetáculo algum terá minha presença.

Vi outro dia, na televisão, o último Batman. Como o filme foi em prosa e verso cantado, decidi ver o que andam vendo por aí. Filme sem dúvida tecnicamente bem feito, afinal o mercado não pode oferecer qualquer lixo aos consumidores. Mas que ridículo atroz, meu Deus! (Há horas em que viro místico!). Que faz aquele personagem com os músculos do rosto à mostra? Não existem cirurgiões plásticos em Gotham City? O recurso, obviamente, é para chocar o espectador. Resulta ridículo e acaba não chocando ninguém.

Há alguns anos, vi declarações de um produtor americano, explicando por que havia tanta flatulência nos filmes ianques. Dizia que puns fazem adolescentes rir. Como o cinema está sendo dirigido aos jovens, satisfaça-se a estupidez inerente à adolescência. O problema é que barbados buscam tais filmes. Vão ao cinema para rir de flatulências. Pelo jeito, não tiveram adolescência.

Fui um apaixonado pelo cinema. Fiz um ano de curso de cinema na Stockholms Universitet, em cuja cinemateca revi toda a história do cinema mudo. Em meus dias como jornalista na Europa, cobri os festivais de Berlim, Cannes e Cartago. Eram outros tempos, os de Ingmar Bergman, Federico Fellini, Kurosawa, Sam Peckinpah, Costa-Gavras, Buñuel, Visconti. Vivi em uma Porto Alegre que respirava cinema. Sexta-feira, à meia-noite, tínhamos sempre a pré-estréia de algum filme de um cineasta importante. Os sábados eram dominados pela discussão da obra, que percorria a semana toda. Eram filmes que mereciam um debate.

Verdade que também eram os tempos de Godard e Antonioni, cineastas que levaram gerações a ver seus monótonos abacaxis nas salas de cinema. Chatos, mas pelo menos não ridículos como essa safra de blockbusters ianques. Do Godard, fui testemunha de uma gafe genial.

Ocorreu no cine Rex, anos 70, na pré-estréia de Alphaville, de Jean-Luc Godard. O suíço tinha suas idiossincrasias e o público não o entendia muito bem. Em meio ao filme, o detetive Lemmy Caution, interpretado por Eddie Constantin, fuzila alguém com dois tiros na testa. Mais adiante, o fuzilado reaparece, vivo e em plena forma. A platéia estava confusa. Jefferson Barros, crítico então marxista (mais tarde viraria muçulmano. Acontece) , brilhou com sua interpretação. Que não podíamos pensar o cinema godardiano a partir de nossa concepção cronológica de tempo. Que o tempo, para o cineasta, era interior, psicológico, acronológico. Era o tempo de Bergson em a Évolution Créatrice, explorado por Proust em A la Recherche du Temps Perdu e retomado por Joyce, em Ulisses.

A tese durou o que duram as rosas. Quando o filme entrou em cartaz, desvendou-se o mistério: na pré-estréia, o operador havia trocado os rolos. A tese do crítico pode ter tido vida breve. Mas era brilhante, sem dúvida alguma. Longe de mim pretender que alguém pense como penso, ou gostar do que gosto. Cada um com seu cada qual. O que não se admite é qualificar como arte embustes que a indústria de Hollywood produz para conquistar platéias. De apaixonado pelo cinema, virei desiludido com o cinema.

Se um dia atravessei países para ver bons filmes, hoje há anos que não vou em uma sala. Tenho me refugiado no cinema antigo. Revi, nestes dias, Uma arma para Johnny, do Dalton Trumbo, e Freaks, la monstrueuse parade, do Tod Browning. Recomendo aos jovens que curtem blockbusters. É um outro cinema.

 
PODE UM INTELECTUAL GOSTAR DA DISNEY?

Rodrigo Constantino




Janer Cristaldo transformou nosso pequeno debate de Facebook em artigo, tendo, claro, a palavra final. É justo. Ele afirma, logo no título, que não se fazem mais intelectuais como antigamente. E eu respeito sua opinião. Pode até ser verdade. Afinal, de certa forma somos todos filhos de nosso tempo, em parte. Gostaria apenas de dizer duas coisas:

1) não respondo pelos meus seguidores, e não aprovo chamarem o outro de "senil" apenas por discordar de sua opinião;

2) mantenho minha visão de que é possível, sim, ter angústias profundas, mergulhar em pensamentos rebuscados, ler ótimos livros e escutar música de primeira, e depois trocar o chapéu, vestir a roupa de "homem comum" e se divertir com a última baboseira high tech de Hollywood ou na montanha-russa da Disney com a filha.

Eu não acho que para ser um intelectual é preciso ser carrancudo e ranzinza, ainda que concorde que não dá para ser o oposto, aquela "happy people", alguém que SÓ quer saber de distrações vazias, de futebol, carnaval e novelas. São coisas diferentes.

Não sei se o Janer tem filhos, mas esse debate me remeteu ao grande historiador Paul Johnson, que define intelectual como alguém que ama as idéias mais do que as pessoas. Quando estou dando um lupin na montanha-russa do Hulk e vendo o sorriso de felicidade estampado no rosto de minha filha, isso é algo muito bom, que não pode ser comparado ao prazer de ler um angustiante Camus ou Kafka. São coisas bem diferentes, e lamento que, para alguns, uma coisa impeça a outra.

Enfim, respeito a opinião de Janer, mas ainda acho que poderíamos, eu e ele, trocar dois dedos de prosa profunda sobre o impacto da igreja nas instituições moralizantes da humanidade, e fazer isso logo depois de ver o último filme do Batman. Por que não?

PS: Dando o benefício da dúvida ao Janer, eu confesso ter dificuldade de imaginar Luiz Felipe Pondé, um filósofo que eu admiro, ao lado do Mickey. Acho que ele vomitaria em cima do Pateta (rs). Mas, como concluiu o próprio Janer, você não pode fugir de quem você é, e minha personalidade, meu estilo, minha visão de mundo, são diferentes. Neles, o humor banal encontra algum espaço, até para suavizar o peso da angústia com as coisas mais sérias. Mas, cada um é cada um. E viva as divergências saudáveis!

segunda-feira, abril 29, 2013
 
NÃO SE FAZEM MAIS
INTELECTUAIS COMO
ANTIGAMENTE



Com o perdão da má palavra, os ianques têm uma virtude extraordinária, a de transformar merda em ouro. Quando digo ouro, não falo do metal, tão buscado pelos alquimistas. Falo simplesmente de dinheiro. Quando digo merda, no caso estou me referindo a esses filmes de super-heróis, tipo Superman, Batman, Homem Aranha, Homem de Ferro e sei lá que mais. Fui grande cultor desses personagens quando era criança – ou pelo menos dos que naquela época existiam. Poderia até mesmo dizer que fui alfabetizado pelas histórias em quadrinhos. Tenho saudades daquelas matinês de sábados, em que a piazada ia ao cinema ver seriados de Flash Gordon e Hopalong Cassidy e trocar bibliografias. Com uma pilha de gibis já lidos nos braços, exercitávamos nossos dotes de comerciantes. Alguns tinham lábia de camelôs e eu, que nunca tive vocação para o comércio, acabava sempre lesado.

Coisas da infância. Aos quinze anos, já estava lendo o Quixote. Enquanto os demais países transpunham suas obras literárias para o cinema, os americanos filmavam seus heróis de quadrinhos. Que adolescentes os buscassem nos cinemas, até que entendo, era uma forma de revisitar a infância. Hoje, vejo que aquelas histórias idiotas geram superproduções milionárias e fazem lotar as salas do Brasil todo.

Por que idiotas? Porque os ditos super-heróis, dotados de superpoderes, não têm adversários à altura. Que pode fazer um pobre e mortal criminoso diante de um ser que derrete geleiras com o olhar, transporta aviões ou encouraçados com uma mão só, desvia cometas e remove montanhas? Não há chance, a história não tem graça. Verdade que a kripotnita – a verde – enfraquecia o Super-Homem, mas kriptonita não se encontra na esquina. Os autores de quadrinhos tiveram então de criar supercriminosos, afinal era preciso tornar difícil a vida dos heróis, ou as historietas perderiam todo e qualquer sabor.

Para crianças, tudo bem. Ocorre que hoje estes filmes lotam salas no país todo e – pior ainda – ocupam páginas e páginas nos jornais, produzidas por críticos que se desinteressam totalmente da qualidade de um filme e só escrevem sobre empulhações que atraem grande quantidade de espectadores. É triste ver as isabelas boscows e luís carlos mertens da vida assinando artigos na Veja ou Estadão sobre blockbusters.

Mas até que se entende. Os jornais sempre acabam se rendendo aos baixos instintos do grande público e precisam captar leitores. Além disso, os críticos de cinema precisam pagar por suas mordomias nas pré-estréias na Califórnia. O mais difícil de entender mesmo são jornalistas ou blogueiros que se pretendem independentes e se revelam fanzocas da mediocridade.

Postou ontem Rodrigo Constantino no Facebook:

- Mensagens filosóficas ou políticas, você não consegue fugir da essência de quem você é, blá-blá-blá. O que REALMENTE me impressionou em Homem de Ferro 3 foi algo mais banal, mais prosaico, mas totalmente atrelado ao conceito de cinema como a sétima arte, em minha humilde opinião: os efeitos especiais! Eu me senti transportado para um mundo à parte. É impressionante. Ver aquela maravilhosa mansão do Tony Stark ruindo foi algo espantoso, fora tantas outras coisas. Vai ver se Cuba ou Irã podem fazer algo parecido... :)

O “millenarista” que rema contra a corrente em defesa da empresa privada, ameaçada neste universo dominado pelo Foro de São Paulo e pelos malvados petistas, o campeão do liberalismo neste governo bolivariano, a jovem promessa do pensamento econômico tupiniquim, não passa então de um fanzoca do Homem de Ferro? E ainda deplora o cinema cubano ou iraniano por não ser capaz de produzir tais abacaxis? Ora, se os cinemas cubano ou iraniano têm alguma virtude, esta é certamente não ter know how suficiente para produzir tais abominações.

Entrei na discussão e acabei provocando a santa ira dos seguidores do jovem economista que, pelo jeito, está assumindo status de guru inconteste. Fui chamado até mesmo de senil. Ou seja, não curtir Homem de Ferro é ser senil. Pelo jeito, sou senil desde os quinze. Talvez até mesmo tenha nascido senil. Os americanos fazem filmes para adolescentes e pegam os barbados aqui no Brasil. Que esperar dessa geração? Como dizia o Nelson: envelheçam, jovens, envelheçam, antes que seja tarde.

- Filmes como esse fazem sucesso em todo lado, não só no Brasil – alega um dos acólitos do novel guru. É o que resta provar. Nunca vi, nas capitais da Europa, tais filmes monopolizando tantas salas de cinema. Nem ocupando a atenção de críticos de cinema, que, chez nous, comentam os filmes como se fossem grandes obras de arte. E mesmo que fizessem sucesso em todo lado, que tem isso a ver com arte? Números nunca foram sinônimo de qualidade artística. Se grandes vendagens fossem sinônimo de qualidade estética, Paulo Coelho seria o gênio nacional. Como aliás ele se julga.

- Janer Cristaldo, você está generalizando. Este tipo de distração é praticamente universal. Acho que ninguém aqui pretende elevar esse tipo de história a cânone. Gerações anteriores à presente, talvez como a sua, foram piores: deslumbraram-se com bobagens pseudo-intelectuais como a Nouvelle Vague.

Como quiser, meu caro. Mas - raras exceções à parte - sempre abominei o cinema francês. Puro teatro filmado. Durante os anos que vivi em Paris, como jornalista não pagava entrava em cinema. Mesmo de graça, sempre evitei o cinema francês. Seja como for, não posso levar a sério quem curte Homem de Ferro, Batman, Superman. São indigentes intelectuais. Se esses filmes fazem sucesso em todo lado, isso só significa que a estupidez é universal.

- Ou então que o ser humano gosta de se divertir.

Divertir-se com histórias idiotas? Com a indústria dos best-sellers? Desculpe-me, mas há formas bem mais inteligentes de diversão. Trata-se de indigência intelectual e não abro.

- Você demonstra um preconceito com relação a "best-sellers". Há muitos descartáveis, mas há alguns muito bons. A função econômica da arte sempre existiu ao longo da História. Além disso, soa muito presunçosa sua fala, como se não pudesse haver sequer alguma experiência humana de nível superior simbolizada em algum filme de super-herói, ou em algum rock. Você parece viver de Platão, Hauser e Toynbee 16h por dia.

Ah sim, está na moda. Para atualizar-se e passar por arte, os quadrinistas estão inserindo angústias existenciais no bestunto de seus personagens. Para acompanhar a época, já estão até mesmo surgindo super-heróis desmunhecados. Mas dá pra levar a sério angústias existenciais em heróis que se vestem de morcego ou usam uma cueca vermelha por cima da calça?

- Eu estava brincando. Quis dizer que ninguém aguenta viver só de alta cultura.

Claro que ninguém agüenta. Não vivo o dia todo respirando alta cultura. Seria sufocante. Mas me recuso a respirar baixa cultura.

- Muitos acham que o cinema está em decadência. Mas, vamos pensar um pouco. Por que tem tantos blockbusters hoje em dia? Por que todo ano tem tantos "épicos"? O mercado decidiu isso. Esses nostálgicos, por sua vez, acreditam que o mercado é "malvado" por isso.

"O mercado decidiu isso". Parece que você leva por demais a sério o mantra do Privatize Já.. Mercado também é Paulo Coelho, Zibia Gasparetto e outras sumidades. Só por que há mercado tenho de submeter-me a best-sellers idiotas? Sou adepto da economia de mercado. As sociedades de consumo me agradam. Por mais idiota e supérfluo que seja o produto, geram empregos. Mas me reservo o direito de não participar disso. E não tenho maior respeito por quem consome besteiras. Até admito que, num fim de noite, estando a coçar o saco em casa, você invista em um filme desses. São filmes tecnicamente bem feitos e servem como divertissement. Daí a levá-los a sério, conceder-lhes méritos como arte, vai uma longa distância.

Vivo em um pequeno círculo de amigos, todos com boas condições financeiras. Fora viagens, boa música e livros, não consomem quase nada. Um deles tem cidadania francesa e apartamento de três quartos em Paris. Como não gosta de Paris, vive feliz da vida em um quarto-e-sala em São Paulo. Tem carro mas quase não usa. Quanto a mim, nem carro tenho. Aliás, fora este amigo, ninguém mais de meu círculo tem carro. Não que eu seja exigente ao selecionar amigos, nem busque os que não consomem nem têm carro. Nada disso. Por afinidades eletivas, acabamos nos encontrando. Vivemos numa sociedade de consumo e não temos nada contra sociedades de consumo. Mas não consumimos.

Volta à carga Rodrigo Constantino:

- Janer Cristaldo, não saber separar as coisas é meio triste, assim como debochar de TODO best-seller. A Disney, por exemplo, pode ser um programa bem divertido com a família. E daí que muitos idiotas só pensam nisso? Vc pode curtir sem ser um deles. eu consigo apreciar Mozart, degustar um excelente Dostoievski, e depois escutar um rock maneiro na montanha-russa da Disney. Ainda bem!

Você curte também Disney, Constantino? Deplorável. Quando vai brindar-nos com uma foto ao lado de Mickey e Pateta? Enfim, cada um com seu cada qual. Nessas visitas à Disney, desconfio que os barbados levam os filhos como pretexto. Quem quer visitar são eles. Gosto não se discute, meu caro. Mas não consigo conciliar música com ruído nem Mozart com rock. Se você consegue, mes compliments. Ça me dépasse.

Não se fazem mais intelectuais como antigamente. Os intelectuais hodiernos curtem Disneylândias e super-heróis. Decididamente – e uso suas próprias palavras - você não consegue fugir da essência de quem você é.

domingo, abril 28, 2013
 
Sobre μαλακοὶ e ἀρσενοκοῖται


Sobre a tradução do pastor Gladstone de Coríntios 1:6, consultei uma boa amiga, a Sílvia Ricardino, tradutora de Nikos Kazantzakis ao português. Dizia o pastor que algumas traduções do livro sagrado dos cristãos foram feitas de forma "maliciosa", e citava como exemplo Coríntios, 1:6. "Versões preconceituosas traduziram o trecho como 'efeminados e sodomitas não herdarão o Reino dos Céus'; porém, o escrito original do grego diz 'Depravados e pessoas de costumes infames não herdarão o Reino dos Céus'".

Oi, Janer, tudo bem? Conferi o que você pediu: parece que o pastor Gladstone (seja lá quem for...) não tem razão.

Α ΠΡΟΣ ΚΟΡΙΝΘΙΟΥΣ ΕΠΙΣΤΟΛΗ
Κεφάλαιο 6
9 ἢ οὐκ οἴδατε ὅτι ἄδικοι βασιλείαν Θεοῦ οὐ κληρονομήσουσι; μὴ πλανᾶσθε· οὔτε πόρνοι οὔτε εἰδωλολάτραι οὔτε μοιχοὶ οὔτε μαλακοὶ οὔτε ἀρσενοκοῖται

Versão em grego moderno: 9 Ή μήπως δεν ξέρετε πως οι άδικοι δε θα κληρονομήσουν τη βασιλεία του Θεού; Mη γελιέστε! Oύτε πόρνοι ούτε ειδωλολάτρες ούτε μοιχοί ούτε ομοφυλόφιλοι ούτε σοδομίτες

Edição Pastoral, Paulus: Vocês não sabem que os injustos não herdarão o Reino de Deus? Não se iludam! Nem os imorais, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os depravados (não tem no texto original), nem os efeminados, nem os sodomitas.

Das palavras controversas

μαλακοὶ = está mais para "efeminados" mesmo;
ἀρσενοκοῖται = literalmente, "aqueles que dormem com homens".

A tradução do Gladstone é um bocado livre.

 
POR UMA PASTORAL
PARA AS NEOBICHAS



Surgiu em São Paulo uma nova igreja, a Igreja Cristã Contemporânea. Segundo os jornais, possui os mesmos rituais de todas as outras: batismos, casamentos, reuniões semanais. Mas se destaca por um motivo especial na pregação da palavra de Deus: ao contrário das igrejas evangélicas tradicionais, dá novas interpretações para trechos bíblicos que as outras costumam usar para condenar a homossexualidade, e prega que "os homossexuais também podem herdar o Reino dos Céus".

Homossexualismo está se tornando um fenômeno religioso. A nova igreja de novo nada tem. Em 2011, surgiu em meu bairro a igreja Cidade de Refúgio, criada por duas pastoras lésbicas evangélicas. Se você é daqueles que um dia sonhou com uma freirinha de hábito, agora há pecado melhor. Pecado multiplicado por três: pastoras, lésbicas e evangélicas.

Mais ainda, militantes. O casal de pastoras, Lanna Holder e Rosania Rocha, encara a Parada Gay como um movimento que deixou de lado o propósito de sua origem: o de lutar pelos direitos dos homossexuais.

“A história da Parada Gay é muito bonita, mas perdeu seu motivo original”, diz Lanna Holder. Para a pastora, há no movimento promiscuidade e uso excessivo de drogas. “A maior concepção dos homossexuais que estão fora da igreja é que, se Deus não me aceita, já estou no inferno e vou acabar com minha vida. Então ele cheira, se prostitui, se droga porque já se sente perdido. A gente quer mostrar o contrário, que eles têm algo maravilhoso para fazer da vida deles. Ser gay não é ser promíscuo.”

Até pode não ser promíscuo, mas o Livro o proíbe. Pelo menos no caso do homossexualismo masculino. No Levítico, lemos: “Com homem não te deitarás como se fosse mulher; é abominação.” E logo mais adiante: “Se também um homem se deitar com outro homem, como se fosse mulher, ambos praticaram coisa abominável; serão mortos; o seu sangue cairá sobre eles”. Mas se homossexuais devem ser mortos, há uma brecha: se um homem se deitar com outro homem, como se fosse mulher. Os judeus sempre abominaram a penetração no vaso indevido, como diria Tomás de Aquino. Quanto às lésbicas, nada contra.

Está surgindo nestes dias um novo tipo de homossexual, as bichas místicas. Reivindicam o direito a usarem o corpo como bem entenderem, mantendo o espírito preso a superstições milenares. É uma enorme brecha a ser ocupado no lucrativo mercado das crendices. Só há um senão, a Bíblia. Mas isso pode ser contornado. Basta adulterar os textos sagrados. Outro dia, furungando em uma livraria, encontrei uma versão da Bíblia para gays. Pareceu-me algo tão ridículo que nem a olhei. Vou olhar com mais atenção da próxima vez. A pastoral das bichas místicas promete.

O pastor Marcos Gladstone, um dos fundadores da igreja, adotou o jargão usado pelo STF para rasgar a Constituição e sacramentar o casamento de homem com homem e mulher com mulher: homoafetividade. Segundo o pastor, o comprometimento no acolhimento de homoafetivos acontece pela percepção de que eles são marginalizados e condenados a uma vida de opressão e distanciamento dos planos e propósitos do Senhor pela própria comunidade cristã". Ora, leio e releio os textos sagrados, e não neles vejo contemplação nenhuma para os homossexuais.

A Igreja Cristã Contemporânea já possui seis templos no Rio de Janeiro e um em Minas Gerais. Com o de São Paulo são oito. "A meta é fundar mais dez igrejas na capital", disse o pastor Gladstone, que já foi seguidor da Igreja Universal do Reino de Deus por quatro anos, até assumir-se homossexual.

Nas palavras do pastor Gladstone, a Bíblia não condena a homossexualidade, e, sim, os rituais pagãos. Ele defende que algumas traduções do livro sagrado dos cristãos foram feitas de forma "maliciosa", e cita como exemplo Coríntios, 1:6. "Versões preconceituosas traduziram o trecho como 'efeminados e sodomitas não herdarão o Reino dos Céus'; porém, o escrito original do grego diz 'Depravados e pessoas de costumes infames não herdarão o Reino dos Céus'".

Seria interessante que o pastor citasse o original grego. Seja como for, como é que fica a prescrição do Levítico? Nela não há lugar para interpretações. Outra interpretação bíblica atacada pelo pastor é a de que a cidade de Sodoma teria sido destruída por causa dos homossexuais. Segundo o pastor, a Bíblia relata que os sodomitas queriam abusar sexualmente de anjos que passavam pela cidade; e que Ló chegou a oferecer suas filhas aos abusadores para que estes deixassem os anjos em paz. De acordo com o pastor, Ló jamais "ofereceria mulheres a um bando de homossexuais abusadores".

Ora, tal gesto é recorrente na Bíblia, nós o vemos novamente em Juízes. Em Gabaá, o levita de Efraim é hospedado por um ancião. Traz consigo sua concubina e seu servo. Os viajantes se reanimavam, eis que surgem alguns vagabundos da cidade, fazendo tumulto ao redor da casa e, batendo na porta com golpes seguidos, diziam ao velho, dono da casa: "Faze sair o homem que está contigo, para que o conheçamos". Então o dono da casa saiu e lhes disse: "Não, irmãos meus, não façais semelhante mal; já que este homem entrou em minha casa, não façais essa loucura. Aqui estão a minha filha virgem e a concubina do homem; fá-las-ei sair; humilhai-as a elas, e fazei delas o que parecer bem aos vossos olhos; porém a este homem não façais tal loucura".

Não quiseram ouvi-lo. Então o levita de Efraim tomou sua concubina e a levou para fora. Eles a conheceram e abusaram dela toda a noite até de manhã e, ao raiar da aurora, deixaram-na”. Ao voltar para casa, o levita pega um cutelo, corta sua concubina em doze pedaços e os remete a todo território de Israel.

Nestes mesmos dias em que a Igreja Cristã Contemporânea instala em São Paulo seu mais novo caça-níqueis, um padre católico decidiu se afastar da Santa Madre, por ter sido repreendido por seu bispo. Roberto Francisco Daniel, mais, conhecido como padre Beto, recebeu um prazo até amanhã, segunda-feira, do bispo diocesano, Dom Caetano Ferrari, para se retratar e confessar o erro cometido em declarações divulgadas na internet. Em um vídeo, o padre admitiu a possibilidade de existir amor entre pessoas do mesmo sexo.

Padre Beto, como Paulo na estrada de Damasco, está molhando o dedinho e erguendo-o aos céus, para ver de onde o vento sopra. O mercado das neobichas – os homoafetivos – é promissor. Segundo o UOL, padre Beto é formado em teologia pela universidade Ludwig-Maxilian de Munique, morou dez anos na Alemanha. Lá também fez doutorado em ética. Suas homílias progressistas lotam missas e criaram uma legião de fãs em Bauru.

Formado em teologia por uma universidade alemã e diz uma bobagem destas:
- Se refletir é um pecado, sempre fui e sempre serei um pecador. Quem disse que um dogma não pode ser discutido? Não consigo ser padre numa instituição que no momento não respeita a liberdade de expressão e reflexão".

Se acha que pode refletir e discutir um dogma, de que lhe valeram os anos de estudo na universidade alemã? Dogma, por definição, não pode ser discutido. Ou será que, ao ordenar-se sacerdote, padre Beto não sabia disto? Dogma é o fim de toda reflexão. Tanto que, quando um concílio se reunia para discutir um dogma, os defensores da versão derrotada davam no pé na hora. De um segundo para outro passavam a ser hereges e se quisessem escapar da fogueira tinham de exilar-se. Ontem, padre Beto anunciou seu "desligamento do exercício dos ministérios sacerdotais", em entrevista coletiva no salão de festas do prédio onde mora. Não seria de espantar que qualquer dia ressurja nos jornais, inaugurando um templo onde proporá uma pastoral para as neobichas.

Dízimo não tem sexo e a messe é farta.

sábado, abril 27, 2013
 
QUEM TE VIU E QUEM TE VÊ


Escreveu o recórter tucanopapista hidrófobo da Veja ontem:

Afirma ainda o presidente da CCJ: “Admissibilidade não é concordância com o mérito, é preciso que fique claro.” Claro que não! Só que a admissibilidade, numa Comissão de Constituição e Justiça, quer dizer que se considerou a proposta CONSTITUCIONAL E JUSTA (isto é, subordinada à ordem legal). Na hipótese de que a tinta no cabelo e o botox não afetaram o cérebro de Lima (não consta que afetem…), gostaria que ele me respondesse: quem tem a guarda da Constituição, segundo a própria… Constituição? É o Congresso? É a voz das ruas transformada em turba? Se o Parlamento e, no limite, o plebiscito definirão a constitucionalidade ou não de uma emenda ou lei, então Supremo Tribunal Federal para quê? Organizemo-nos em milícias, e quem pode mais chora menos. Voltemos, pois, ao estado da natureza, a uma sociedade comandada por senhores da guerra.

Nem sempre foi assim. Há exatamente um ano, o recórter tucanopapista hidrófobo achava simpática a proposta do sublime Nazareno. Em 26/04/2012, quando a PEC petista foi aprovada, escreveu:

Cotas, aborto de anencéfalos, casamento gay, marcha da maconha, coligações, uso do Twitter… Tribunais Superiores estão solapando prerrogativas do Congresso. Isso não é bom! Já há uma primeira reação na Câmara

É, senhores… As coisas vão tomando um rumo não muito bom. A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara aprovou ontem, por unanimidade, uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que permite ao Congresso alterar decisões do Poder Judiciário se considerar que elas exorbitaram o “poder regulamentar ou os limites da delegação legislativa”. A proposta é de um deputado do PT chamado Nazareno Fonteles, do Piauí. Não sei quem é. Nem vou procurar para que não me sinta desestimulado a dizer o que acho que tem de ser dito. Eu adoraria estar aqui, neste momento, a escrever um texto esculhambando as pretensões do deputado Nazareno e de quantos se alinhassem com tal intento. Mas, infelizmente, não vou fazer isso, não! O STF, lamento, ocupa de tal sorte a cena política, e com tal protagonismo, que alguém terá de lembrar que o tribunal que ele não existe para a) reescrever a Constituição; b) criar leis — e isso vale também para o Tribunal Superior Eleitoral. Numa democracia, nenhum Poder é soberano. Infelizmente, vejo o Judiciário tentando exercer essa soberania sob a justificativa de que o Poder Legislativo não cumpre a sua parte. Ainda que não cumprisse, indago: o que dá ao Judiciário o poder de legislar? Infelizmente (repito o advérbio), ativismo judicial está virando discricionariedade.

sexta-feira, abril 26, 2013
 
LA CONSTITUTION, SOMMES NOUS!


De repente, não mais que de repente, os senhores ministros descobriram que andam rasgando a Constituição. Declarou ontem Gilmar Mendes, sobre a PEC que submete decisões do STF ao Congresso Nacional:

- A PEC é inconstitucional do começo ao fim, de Deus ao último constituinte que assinou a Constituição. Eles rasgaram a Constituição - afirmou o magistrado. - Se um dia essa emenda vier a ser aprovada, é melhor que se feche o Supremo Tribunal Federal.

Quem diria? Logo um ministro do STF – tribunal que tem rasgado a Constituição a seu bel prazer para agradar a mídia e tendências da época – acusando o Congresso dos mesmos desmandos que o tribunal já cometeu. Parafraseando Pessoa: constituições são papéis pintados com tinta. Que podem ser rasgados ao sabor das ideologias. O arbítrio se repete? Vou repetir-me. Não tenho disposição – nem há por quê – buscar argumentos novos.

Aos 26 de abril de 2012, a suprema corte judiciária do país rasgou o papelucho com gosto, instituindo de inhapa e por unanimidade o racismo no país. Naquela data, o STF revogou, com a tranqüilidade dos justos, o art 5º da Constituição Federal, segundo o qual todos são iguais perante a lei sem distinção de qualquer natureza. A partir de então, oficializou-se a prática perversa instituída por várias universidades, de considerar que negros valem mais do que um branco na hora do vestibular. A prática nefanda já está sendo transferida para o mercado de trabalho.

Os considerandos a favor do racismo foram vários. Segundo o ministro Cezar Peluso, “há graves e conhecidas barreiras institucionais do acesso aos negros às fontes da educação”. Como se não houvesse barreiras institucionais também para os brancos. Se o vestibular barra negros, barra também brancos, amarelos, verdes ou azuis. “É preciso desfazer a injustiça histórica de que os negros são vítimas no Brasil”, continuou o ministro. Como se os milhões de brancos que vivem na miséria não fossem vítimas de injustiças históricas.

Segundo o ministro Joaquim Barbosa, as ações afirmativas tentam neutralizar o que chamou de “efeitos perversos” da discriminação racial: “As medidas visam a combater a discriminação de fato, de fundo cultural, como é a brasileira. Arraigada, estrutural, absolutamente enraizada na sociedade. De tão enraizada as pessoas nem a percebem, ela se normaliza e torna-se uma coisa natural”.

Barbosa é aquele ministro negro, que chegou a mais alta corte do país sem ter sido juiz e ainda continua se queixando de racismo. Como Lula, que continua denunciando as elites depois de virar elite, esqueceu de virar o disco. Barbosa empunha as ações afirmativas, recurso racista dos negros americanos para ganhar no tapetão na hora de entrar na universidade.

Em maio do mesmo ano, o STF revogou de uma penada o § 3º do art. 226 da Carta Magna: “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”. Ao reconhecer a união estável para casais do mesmo sexo, o excelso pretório jogou no lixo a carta aprovada por uma Constituinte.

Onde se lia homem e mulher, leia-se homem e homem, ou mulher e mulher e estamos conversados. A partir de hoje, onde se lia “todos são iguais perante a lei sem distinção de qualquer natureza”, leia-se: todos são iguais perante a lei, exceto os negros, que valem mais. Simples assim.

A Constituição foi rasgada com um neologismo mal construído – homoafetividade – típico de pavão de toga que desconhece os rudimentos do grego. Homo, no caso, nada tem a ver com homossexual. Homo, em grego, quer dizer mesmo. O neologismo escroto significaria mesma afetividade. O que não significa nada.

O ministro Ayres Brito, leitor de Osho e adepto da teoria quântica do Direito – seja lá o que isso quer dizer – lançou mãos de seus pendores poéticos para revogar a Carta Magna. É sua a frase lapidar proferida durante o julgamento das uniões ditas homoafetivas: “o órgão sexual é um plus, um bônus, um regalo da natureza. Não é um ônus, um peso, um estorvo, menos ainda uma reprimenda dos deuses”.

O voto inaugural do ministro Ayres Britto está eivado de uma poesia extraordinária: “Em suma, estamos a lidar com um tipo de dissenso judicial que reflete o fato histórico de que nada incomoda mais as pessoas do que a preferência sexual alheia, quando tal preferência já não corresponde ao padrão social da heterossexualidade. É a perene postura de reação conservadora aos que, nos insondáveis domínios do afeto, soltam por inteiro as amarras desse navio chamado coração”.

O brilhante argumento, que de jurídico ou lógico nada tem, foi suficiente para justificar o injustificável. De minha época, não era bem esse navio chamado coração que levava ao homossexualismo. Mas sim outras naves menos nobres. É a mais recente jabuticaba nacional. Constituição se rasga com estro poético. A “tal preferência” pode já não corresponder ao padrão social da heterossexualidade. Mas existe uma lei – e lei magna – que não contempla o navio chamado coração. Se alguém quer fazer as coisas corretamente, revogue-se primeiro a tal de lei. Ou a letra da lei passará a não valer um vintém neste país.

O espantoso, escrevia eu ontem, é que somente agora a imprensa e os ministros tenham notado que a Comissão de Justiça da Câmara dos Deputados aprovou um projeto de emenda à Constituição que, se levado adiante, representará nada menos do que um golpe de Estado. Ora, a CCJ já havia aprovado a PEC por unanimidade, em abril do ano passado, e a havia encaminhado a uma comissão especial.

Que deputados não tenham a menor idéia do que seja lei maior ou lei menor ou divisão de poderes, até que se entende. Deputado no Brasil não é quem detém maior ou menor cultura jurídica, mas sim quem mente mais. Já o Judiciário rasgando constituição, isto é bem mais grave e preocupante.

Isso sem falar na anulação do direito adquirido, ocorrido durante a votação da reforma previdenciária, com votos comprados pelo governo. O hoje tão louvado ministro Joaquim Barbosa, tido como o herói que quer mandar os mensaleiros para a cadeia já avalizou, no julgamento de uma ADIN em 2007, a compra de votos.

Ainda há pouco, o ministro Marco Aurélio Mello afirmava: “No nosso sistema, o Supremo tem a última palavra. A Constituição é o que o Supremo diz que é”.

Existe ou não existe uma carta chamada constituição? Ou essa carta não passa de um papel pintado com tinta, interpretado ao bel talante de seus donos, os ministros? Pelo jeito, parece que é, pois os ministros não tiveram escrúpulo algum ao aprovar dispositivos flagrantemente inconstitucionais, como a anulação do direito adquirido, na votação da reforma previdenciária, a lei das cotas e o casamento homossexual. A Constituição é o que o Supremo quer que a Constituição seja.

Alguém ainda lembra de Luís XIV? A ele atribuiu-se a frase “l’État c’est moi”. Não bastasse termos um ministro quântico influenciado por um vigarista indiano, um outro recomendado para a suprema magistratura por bandoleiros, temos agora um outro imbuído da idiossincrasia da realeza da França. É como se dissesse: “la Constitution, somme nous”. Nós, os do STF.

Do arbítrio destes senhores depende a vida, a liberdade e o futuro dos brasileiros.

quinta-feira, abril 25, 2013
 
IMPRENSA JÁ NÃO LEMBRA DO
QUE OCORREU NO ANO PASSADO



Sou um arúspice ou tenho delírios que mais tarde se transformam em realidade? Diria que não estou sonhando. Meu blog, que tem existência concreta, independentemente de mim, diz que não. Em 27 de abril do ano passado, eu saudava o deputado Nazareno Fonteles:

O SUBLIME NAZARENO
PROPÕE 4ª INSTÂNCIA


“Quarta-feira passada, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara aprovou, por unanimidade, uma proposta de emenda constitucional (PEC) que permite ao Congresso sustar decisões do Poder Judiciário. Atualmente, o Legislativo pode mudar somente decisões do Executivo. A proposta seguirá agora para uma comissão especial. O objetivo da proposta, de autoria do deputado católico Nazareno Fonteles (PT-PI), é permitir que o Congresso tenha a possibilidade de alterar decisões do Judiciário se considerar que elas exorbitaram o "poder regulamentar ou os limites de delegação legislativa".

Hoje, nos principais veículos do país, leio o pasmo e indignação dos jornalistas. Escreve Ricardo Setti, da Veja:

É uma barbaridade!
A Comissão de Justiça da Câmara dos Deputados — justamente a comissão de JUSTIÇA — aprovou hoje um projeto de emenda à Constituição que, se levado adiante, representará nada menos do que um golpe de Estado.
Contrariando uma multissecular tradição profundamente enraizada no Ocidente, contrariando o espírito da Constituição, contrariando o bom senso e as regras elementares da democracia, a emenda à Constituição pretende submeter ao Congresso decisões da Justiça que declare leis como inconstitucionais.
Isso ocorrerá – se essa loucura prosperar – sempre que o Supremo Tribunal Federal julgar procedentes as chamadas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (Adin) propostas por vários órgãos legalmente autorizados a isso (veja quais na lei que regula as Adins, parágrafo 2º).
Ou seja, deputados e senadores serão quem decidirão, em última instância, se vale ou não vale o que eles próprios aprovaram. Nesses casos, serão os juízes de si mesmos — em detrimento dos direitos e garantias individuais dos cidadãos, cuja garantia é a Justiça.


Até o recórter tucanopapista hidrófobo transuda indignação. Continua o indignado Setti:

Querem castrar o Supremo!
Querem amordaçar a Justiça!
Querem se vingar pelo fato de a corte ter cumprido a Constituição e as leis e enviado os mensaleiros para a cadeia.
Já dominam o Legislativo com os métodos que todos conhecemos. Agora, querem que esse Legislativo, que controlem, dominem também o Judiciário.
A democracia estará ameaçada com esse golpe de Estado branco se ele seguir adiante no Congresso.


Mas... mas... mas... será que nenhum jornalista viu isto, há exatamente um ano, em abril de 2012? Como que a “Comissão de Justiça da Câmara dos Deputados aprovou hoje um projeto de emenda à Constituição que, se levado adiante, representará nada menos do que um golpe de Estado”? Estaria eu delirando quando escrevi, em abril do ano passado, que a CCJ da Câmara havia aprovado, por unanimidade, uma PEC que permitia ao Congresso sustar decisões do Poder Judiciário?

Ora, a CCJ já havia aprovado a PEC por unanimidade, e a havia encaminhado a uma comissão especial. Se não sou profeta – e nunca me pretendi tal – quem a aprovou agora foi uma comissão especial da CCJ.

O jornalismo nacional prima pela falta de memória. Há horas defendo a contratação de um jornalista antigo nas redações para revisar as notícias do dia redigidas pelos jovens, que acham que a História começou ontem. O jornalismo se pouparia de gafes como estas, na qual caíram todos os jornais que li, pelo menos até hoje pela manhã.

A exótica PEC – disseram os jornais da época, o que aliás prova que eu não delirava - tornou-se prioridade da frente parlamentar evangélica desde que o STF decidiu permitir o aborto de fetos anencéfalos. O coordenador da bancada, deputado João Campos (PSDB-GO), afirmava que o objetivo era enfrentar o "ativismo judiciário".

- Precisamos colocar um fim nesse ativismo, nesse governo de juízes. Isso já aconteceu na questão das algemas, da união estável de homossexuais, da fidelidade partidária, da definição dos números de vereadores e agora no aborto de anencéfalos", afirmava Campos.

Os mensaleiros ainda não haviam sido condenados, como pretende Setti. A PEC era retaliação da representação evangélica contra decisões do Judiciário. Comentei na ocasião: última instância já era. Quando decisão de última instância contrariar grupos religiosos, alguma PEC há de se achar para mandar a última instância para o lugar de penúltima. Pelo jeito, os jornalistas já não lembram nem mesmo de notícias do ano passado. A PEC foi proposta do deputado petista Nazareno Fonteles. Espanta-se Setti:

- Como ocorre com muitos dos trabalhos “sujos” no Congresso, a emenda foi originalmente apresentada por um deputado medíocre, obscuro, de quem ninguém nunca ouviu falar — um certo Nazareno Fonteles, do Piauí (e do PT, é claro!). Ele alcançará, agora, seus 15 minutos de fama, exercendo esse triste papel.

Como que ninguém ouviu falar? Fonteles é inesquecível. Setti, pelo jeito, vive nalgum outro planeta que não o nosso. Em 2004, o deputado apresentou no Congresso o nobilíssimo projeto de Lei Complementar, que estabelecia um limite máximo de consumo aos brasileiros e a tal de Poupança Fraterna. Para que se tenha uma idéia do espírito generoso do deputado, transcrevo os itens iniciais de seu generoso projeto:

O Congresso Nacional decreta:
Art. 1º Fica criado o Limite Máximo de Consumo, valor máximo que cada pessoa física residente no País poderá utilizar, mensalmente, para custear sua vida e as de seus dependentes.
§ 1º O Limite Máximo de Consumo fica definido como dez vezes o valor da renda per capita nacional, mensal, calculada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, em relação ao ano anterior.
Art. 2º Por um período de sete anos, a partir do dia primeiro de janeiro do ano seguinte ao da publicação desta Lei, toda pessoa física brasileira, residente ou não no País, e todo estrangeiro residente no Brasil, só poderá dispor,
mensalmente, para custear sua vida e a de seus dependentes, de um valor menor ou igual ao Limite Máximo de Consumo.
Art. 3º A parcela dos rendimentos recebidos por pessoas físicas, inclusive os que estejam sujeitos à tributação exclusiva na fonte ou definitiva, excedente ao Limite Máximo de Consumo será depositada, mensalmente, a título de empréstimo compulsório, em uma conta especial de caderneta de poupança, em nome do depositante, denominada Poupança Fraterna.

Da proposta do sublime Nazareno resultava que seriam poupadores na Poupança Fraterna – isto é, seriam confiscadas – todas as pessoas que tivessem, em 1999 e a preços daquele mesmo ano, rendimentos mensais superiores a R$ 5.527,00.

Quem pode esquecer isso? Só mesmo uma imprensa sem memória. Por outro lado, se há horas o Judiciário vem legislando, que impede o Legislativo de querer julgar? Vai ser divertido – escrevi na ocasião -. Imagine as sentenças de pavões como Marco Aurélio de Mello ou Joaquim Barbosa sendo revisadas por Tiririca.

Amor com amor se paga.

quarta-feira, abril 24, 2013
 
ONU: OBSCURANTISMO
TARDA MAS NÃO FALHA



Há dois anos, comentei o livro Deutschland schafft sich ab (A Alemanha se destrói), de Thilo Sarrazin, no qual o ex-diretor do Bundesbank e membro do Partido Socialdemocrata Alemão (SPD) acusa os imigrantes turcos e alemães de constituírem “o coração do problema”, devido à sua escassa integração e sua dependência massiva das ajudas sociais. Em 2009, às vésperas do 20º aniversário da queda do Muro, em entrevista para a revista Lettre International, dizia Sarrazin:

“A integração requer um esforço por parte de quem quer se integrar. Eu não respeito quem não quer fazer este esforço. Não tenho porque reconhecer aqueles que vivem das ajudas públicas, mas negam a autoridade do Estado que as outorga, não educam seus filhos e produzem constantemente mais meninas com véus. Isto vale para 70% da população turca e 90% da população árabe em Berlim”.

E mais: alegou que os imigrantes muçulmanos "produzem constantemente meninas com lenços na cabeça" e faziam parte de "uma subclasse que não faz parte do ciclo econômico normal. Um grande número de árabes e turcos (em Berlim) não têm nenhuma função produtiva a não ser no comércio de frutas e verduras".

O autor ainda alertava: “A gente que bebia no bar do Titanic tampouco se dava conta de nada: a orquestra tocava, todo mundo estava bem, e nas primeiras horas ninguém notou o problema. Apesar disto, estavam condenados à morte, porque a água continuava entrando na nave”.

Tais denúncias têm sido condenadas pelas esquerdas européias, em nome do tal de multiculturalismo, como racistas e xenófobas. A defesa do ilícito virou norma entre os intelectuais do Velho Continente: os imigrantes ilegais têm todo o direito a permanecer em território europeu. Foi criado até mesmo um neologismo inadequado para definir quem defende o Estado de direito: islamofobia. Literalmente, medo do Islã. Ora, os europeus não têm exatamente medo do Islã. Têm, isto sim, é asco.

Intelectuais de esquerda julgaram ofensivas as observações de Thilo Sarrazin sobre os imigrantes muçulmanos, embora os promotores tenham rejeitado as acusações, citando as leis de liberdade de expressão. No entanto, um comitê da ONU – esse festival permanente de discursos inúteis - discordou e acusou a Alemanha de violar uma convenção anti-racismo.

O obscurantismo tarda, mas não falha. O comitê para a Cerd (Eliminação da Discriminação Racial) repreendeu a Alemanha com um texto forte, dizendo que o país violou uma convenção internacional. É o que dizem os jornais. O que está em jogo são aquelas declarações polêmicas feitas em 2009, sobre turcos e os árabes, que segundo Sarrasin, sugavam o governo e eram incapazes de se integrar, entre outras coisas.

De acordo com o Comitê da ONU, as palavras de Sarrazin constituíram uma violação da Convenção Internacional para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial. Ou seja, afirmar o óbvio virou crime. Fica proibido afirmar que imigrantes árabes e turcos vivem à custa da generosidade européia. A ONU está tentando transformar a Europa, berço da democracia e da livre expressão do pensamento, em republiqueta de Terceiro Mundo, onde impera a vontade de quem tem detém o poder. Pretenderá a ONU proibir o livro de Sarrazin?

"Esta é uma decisão histórica", disse a TBB Turkish Union, a organização cultural que submeteu o caso ao comitê, numa declaração feita na quinta-feira passada. "O Cerd determinou que os comentários de Sarrazin atingem um sentimento de superioridade racial ou ódio racial e contêm elementos de incitação à discriminação." Afirmar o óbvio agora é racismo.

Há mais de três anos, comentei Os últimos dias da Europa, no qual o historiador alemão Walter Laqueur analisa os problemas da imigração africana e muçulmana na França, Alemanha, Reino Unido e Espanha. Para dar uma idéia do livro, vou ater-me ao Estado alemão que, a crer-se no relato do autor, rendeu-se definitivamente à barbárie islâmica.

Laqueur nos traz relatos insólitos dos bairros de Kreutzberg, Wedding, Neukoelln e outros habitados por turcos. Neles existem bancos, agências de viagem, lojas e consultórios médicos turcos. Rapazes param as pessoas nas ruas e lhes dizem que, se não são muçulmanas, devem deixar as redondezas. Isto não é sentimento de superioridade racial ou ódio racial.

As crianças alemãs têm sido expulsas de playgrounds. Na escola, os não-muçulmanos são pressionados a jejuar durante o ramadan, as garotas não-muçulmanas são coagidas a usar roupas parecidas com as das garotas muçulmanas ou, pelo menos, saias, calças ou camisetas que não sejam consideradas indecentes. Pais de estudantes tiveram conhecimento de que, sejam quais forem as orientações que a escola lhes dê, a mesquita e suas aulas têm sempre a prioridade. Isto também não é um sentimento de superioridade racial ou ódio racial. Muçulmano pode discriminar à vontade. Alemão não pode nem criticar.

O Cerd também fez um ultimato à Alemanha, dando ao país 90 dias para informar ao comitê sobre as medidas que tomará para lidar com a opinião. Ele também recomendou que o país "reveja suas políticas e procedimentos em casos de suposta discriminação racial" e distribua amplamente essas informações aos promotores e órgãos judiciais. A tendência da Alemanha é abrir as pernas. "O documento com a opinião do comitê está no Ministério da Justiça e será revisto", disse o governo ao jornal Der Tagesspiegel.

A ONU quer entregar os europeus de pés e mãos atadas aos bárbaros. Sem que possam exercer sequer o direito de protestar. Se bem conheço os bois com que lavro, em breve a moda chega até nós.

terça-feira, abril 23, 2013
 
QORPO SANTO E OS HIPOTRÉLICOS (*)


DO MALA-NOS-TENTOS

O tal mineiro é das Minas.
Minas Gerais me parece
de Sabará ou Surubi.
De lá se veio mui pobre!
E agora, com plata e cobre,
Minas achou ele aqui.

Aureliano de Figueiredo Pinto, in Armorial de Estância e Outros Poemas

Os homens não se dividem apenas entre os que criam e os que não conseguem fazê-lo: existem também os que pedem aos criadores carona para a posteridade.

O criador que nos interessa é Jozé Joaquim Qampos Leão Qorpo Santo. Dele não diremos mais que isto: morreu há quase um século, genial, desconhecido e ridicularizado. Morto em 1883, teve três de suas peças encenadas exatamente um século após escritas. A importância de sua obra na dramaturgia contemporânea não admite discussões: já se impôs por sua força e originalidade. Neste momento, no entanto, sua obra não nos interessa. Queremos falar apenas de quem pretende tê-lo descoberto.

Tem o professor Guilhermino César da Silva feito declarações a periódicos nacionais manifestando o seu entusiasmo pela “sua” descoberta. Analisemos alguns trechos de suas entrevistas.

Escreve, falando de A Ensiqlopédia ou Seis Meses de uma Enfermidade: “Sairam ao todo nove ou dez fascículos, dos quais só se conhecem três, dois pertencentes ao Prof. Dario Bittencourt e um ao escritor Olyntho Sanmartin”[1]. E mais adiante: “Ao escrever a História da Literatura do Rio Grande do Sul, aparecida em 1956, nada encontramos da autoria de Qorpo Santo nas bibliotecas e arquivos do Estado e do País apesar das muitas buscas realizadas’’[2].

No entanto, na sua História da Literatura do Rio Grande do Sul há referência a Olyntho Sanmartin, “que generosamente nos franqueou a sua preciosa coleção de autores rio-grandenses”.[3]

Sanmartin possuía um Qorpo Santo. Guilhermino César afirma ter tido acesso à sua coleção de autores gaúchos em 1956, ou antes. E em 1968 diz nada ter encontrado deste autor “nas bibliotecas do Estado e do País, apesar das muitas buscas realizadas”.

Outra ainda, se não tão culposa, bem mais grave: “Aquiles Porto Alegre, Athos Damasceno Ferreira e Álvaro Moreira se referem ao pobre autor para tomá-lo como objeto de escárnio”[4].

Diz-nos Athos, em 1940: “Dois tipos sem limites, e que, por isso, devem ser vistos acima do tempo, foram Artur de Oliveira e Qorpo Santo...

“...(Qorpo Santo) não tirou os pés daqui. E nunca pôs os pés em agremiações, academias, rodinhas, sociedades ou o que fosse. Foi um solitário. Um esquisitão. Um maluco. Não aparece nas citações autorizadas, jamais foi tido como intelectual e quando a História se lembra dele transfere o poeta para o futuro apenas como tipo popular. É uma injustiça. Clamorosíssima. Qorpo Santo foi o nosso primeiro supra-realista, o precursor da grande revolução poética brasileira, uma espécie de Tiradentes do movimento modernista do País”[5].

Objeto de escárnio?

Tampouco Aquiles Porto Alegre o toma como objeto de escárnio, embora o julgue louco. Com suas palavras:

“Qorpo Santo, atualmente de memória tão ridicularizada pelos intelectuais. Todavia, antes do desequilíbrio mental, de que foi vítima, Qorpo Santo foi homem de certo valor e representação... No anno de 1876, já visivelmente transtornado do cérebro...[6]

“Tomou muito a sério as suas obrigações, cumprindo religiosamente seus deveres. Por onde andou deixou bom nome pela sua conduta irreprehensível, não só na vida íntima como no cargo que exercia. Nos últimos anos, já não regulava com acerto”[7]

Em artigo escrito para o teatro do Clube de Cultura, escreve o professor Guilhermino: “ O século XIX viu-o sob o ângulo puro e simples da loucura. Aquiles Porto Alegre escreveu a seu respeito uma crônica espirituosa... O mesmo fizeram Athos Damasceno Ferreira, Álvaro Moreira e Olyntho Sanmartin, mais recentemente, em dois artigos na imprensa local”[8]. Contrapomos aqui apenas alguns excertos de Olyntho Sanmartin.

“Sem ser um modernista do nosso tempo, fez, no entanto, literatura contrariando todos os princípios acadêmicos. Grande homem este Qorpo Santo, que fazia sua literatura sem tomar conhecimento do mundo literário que o cercava.

“Qorpo Santo pode ser considerado um neoprecursor sui-generis do modernismo literário no Rio Grande do Sul, ainda que de tendência moderna, respeitando em parte os preceitos da poesia passadista”[9].

...sob o ângulo puro e simples da loucura?

Ou residiria o caráter da descoberta de Guilhermino César da Silva em colocá-lo como precursor do teatro do absurdo?

No entanto, em data bem anterior, Lúcia Carvalho Melo falava em “Ionesco gaúcho”, em “exceção genial dentro do contexto teatral do século XIX. A autenticidade e valor do teatro de Qorpo Santo consiste em ele apresentar uma visão toda sua do mundo, deformada pela crueldade, pela distorção, pela desconexão, destruindo a personalidade dos personagens que se apresentam fracionados na ação e na palavra”[10].

E quando Lúcia Carvalho Melo fez esta declaração, o prof. Guilhermino César já possuía os originais do teatrólogo, há três ou quatro anos, sem ter dito uma palavra a respeito do mesmo. Aliás, diz-nos Athos Damasceno Ferreira: “Nenhum dos historiadores da literatura rio-grandense — João Pinto e Silva, Guilhermino César e outros — se arriscou a dar algumas linhas de presente ao curioso poeta do Sobradinho da Praça da Alfândega”[11].

Diz o autor de Meia Pataca no Jornal do Brasil: “Um dia, porém conversando com Aníbal Damasceno Ferreira, disse-nos ele que o professor Dario de Bittencourt possuía um fascículo da Ensiqlopédia. “no qual havia muitas peças daquele autor. Havia lido algumas e estava impressionado”[12].

Como explicar esta assertiva do professor Guilhermino, ao referir-se tão superficialmente a quem realmente desenterrou Qorpo Santo do pó das bibliotecas? Vejamos:

Aldo Obino, 1963: “A obra de Qorpo Santo foi localizada por Aníbal Damasceno Ferreira, um artífice silencioso de nossa vida teatral e artística... Aníbal Damasceno conseguiu que o Dr. Dario de Bittencourt cedesse a obra, por empréstimo, ao professor Guilhermino César, hoje lá por Coimbra, o qual pretende escrever um livro sobre o mesmo”.[13]

Antonio Carlos Cardoso de Sena, responsável pela encenação primeira das peças deste teatrólogo, diz-nos, em entrevista à imprensa gaúcha, ser Aníbal Damasceno Ferreira a chave do mistério Qorpo Santo, “o qual conseguiu despertar nos companheiros, o gosto pelo esquisito autor”.[14]

Qorpo Santo foi encenado em 1966. E no folheto de apresentação de suas peças, a estréia é dedicada a Aníbal Damasceno Ferreira, “que nos levou ao encontro de Qorpo Santo”.

Sérgio Jockyman, em agosto de 1966, afirmava na Zero Hora: “Há dois anos atrás, o Damasceno da rádio Universidade me disse que Qorpo Santo era um gênio”.

À página 245 de sua História da Literatura, escreve o prof. Guilhermino: “Muitos outros poetas apareceram até 1884, (parêntesis nosso: Qorpo Santo morreu em 1883) ano da introdução do Parnasianismo no R. S.; como não se destacaram de modo especial, basta que citemos seus nomes: Antonio Ferreira das Neves, Artur Candal, etc.” Segundo bibliografia citada em sua obra, Guilhermino César teve conhecimento de que Qorpo Santo poetava. Por que ao menos neste segundo lugar não lhe deu colher de chá?

História da Literatura. p. 23: “Não consegui sequer localizar o primeiro romance rio-grandense, A Divina Pastora, de Caldre e Fião, sem embargo de ter feito o impossível para isso. Espero que algum leitor magnânimo me dê um dia esse prazer”.

Porque não teve o erudito professor o mesmo escrúpulo em relação ao autor de Mateus e Mateusa? Ainda mais quando se propõe a dar um livro que “há de ser um guia de estudiosos da atividade literária gaúcha, senão também dos que demonstrem curiosidade pela cultura local”.

Entrevistamos o Dr. Olyntho Sanmartin. Afirmou-nos ter sido Aníbal Damasceno quem primeiro foi procurá-lo para consultar os fascículos em questão.

Entrevistamos Dario de Bittencourt. Disse-nos possuir Qorpo Santo desde 1919. Disse-nos também que, de l919, absolutamente ninguém mostrou interesse pelo autor, até a data de 1959, quando o emprestou a Aníbal. Confirmou-nos ainda ter sido este esquálido pesquisador quem primeiro foi procurá-lo e levou a obra às mãos do professor Guilhermino César, por julgá-lo competente para o estudo do assunto.

Imperdoáveis são as omissões do professor Guilhermino César. Exatamente pela tentativa de justificação das mesmas. Diz-nos em sua história da Literatura: “As omissões, deliberadas umas, involuntárias outras, não desfiguram porém o essencial”[15]. No entanto, hoje este esquecido teatrólogo tem mais importância e renome na literatura nacional que qualquer dos nomes citados em toda sua obra.

Resumindo: Dario de Bittencourt possuía os fascículos da enciclopédia desde 1919. Athos menciona o autor em questão em 1940, declarando-o injustiçado. Sanmartin proclama sua grandeza em 1957. Lúcia Carvalho compara-o a lonesco em 1963. Athos volta a falar sobre Qorpo Santo em 1964. Aníbal estuda sua obra desde 1959, e sugere a Sena sua apresentação. Guilhermino César, tendo possibilidades de acesso ao que restou de sua obra, o omite em sua História da Literatura, em 1956. Possuindo sua obra desde 1960, escreve seus primeiros artigos sobre o autor em 1966, a pedido de Sena e da equipe que o representou.

E em 1968, no Jornal do Brasil, falando a respeito de escritores que o mencionaram, omite seus verdadeiros descobridores.

Como aproximou-se Aníbal Damasceno do teatrólogo gaúcho? Sabendo-o pessoa doente e solitária, ridicularizada e extravagante, completamente afastada do convívio social ao fim de sua vida, e conhecendo-lhe os poemas, intuiu em Qorpo Santo possibilidades de uma literatura satírica.

Tendo em mãos suas peças, tratou imediatamente de sugeri-las a seus amigos de teatro. Salientemos, a bem da verdade, que Aníbal — ele próprio o declara — não tinha consciência exata das dimensões estéticas do teatro que desenterrara. Tal mérito cabe não apenas a Lúcia Carvalho Meio, como também a Yan Michalsky, que assistindo a tão somente duas peças deste autor, não hesitou em proclamá-lo “verdadeiramente sensacional, primeiro precursor mundial do teatro do absurdo”.

Aníbal Damasceno é um pesquisador do esquecido, do que foi coberto pelo pó do anonimato e do tempo. Sua concepção da História é nada marxista: diz como Machado: a História é mulher loureira. E continua: diante da eternidade, tanto faz ser Dante Alighieri ou Dante de Laitano. A pousar os olhos na figura de D. Pedro I, sempre preferiu as memórias de Chalaça. Tomou-se de amores pelo Barão do Cemitério. E também por Qorpo Santo.

Mas ao professor Guilhermino César, nada mais concedemos além do título de divulgador.

É verdade que assim já se referiu: “Um grupo de jovens, à frente dos quais se colocou Aníbal Damasceno, que a muitos estimulou na descoberta de pistas que levassem ao cerne dessa obra esquecida...“[16]. Temos de convir ser esta uma referência excessivamente mesquinha a quem, além de ter ressuscitado o teatrólogo gaúcho, forneceu a Guilhermino César todo o material que constitui seu livro sobre Qorpo Santo, a saber: peças, documentação fotográfica, cópia do ato de encomendação e inventário.

Em artigo posterior. persiste: “Já escrevi várias vezes que foi Aníbal Damasceno quem me forneceu a pista dos exemplares em que foram publicadas peças de Qorpo Santo”. Ora, Aníbal não lhe forneceu a pista, mas tudo. Notas inócuas ao pé das páginas, constituídas em geral por observações irrelevantes sobre a grafia do autor, é o único trabalho pessoal de Guilhermino César em seu livro sobre Qorpo Santo.

Considerando-se que Guilhermino, no artigo de apresentação da peça do Clube de Cultura, nem sonha ter em mãos o precursor mundial do teatro do absurdo, só “ousando” assim classificá-lo quando Michalsky, vendo apenas duas peças o proclama como tal, temos fortes razões para desconfiar dos critérios de seleção das peças reunidas. Se Guilhermino César não teve sensibilidade para aquilatar devidamente o autor que lhe foi apresentado, tê-la-ia para selecionar seus melhores textos?

Ao trazermos a público estes dados, pretendemos prestar um depoimento à História enquanto vivem os protagonistas deste caso.

A omissão foi grave, e pior ainda, caso assim não é único. Olhando para trás, vemos a todo momento gênios injustiçados em vida. Seres que se elevaram à mais alta condição do espírito, e são tidos como imbecis por seus contemporâneos e gerações seguintes. As páginas dos jornais lhes são proibidas, a crítica os ignora, têm um universo a transmitir e as mãos atadas. Que horrível sensação de impotência não terá sentido nosso teatrólogo diante da estupidez que o rodeava!

E quem são as pessoas, que com o silêncio, soterraram por tanto tempo este homem?

Além do professor Guilhermino, todos outros que não o mencionaram, conhecendo-o e à sua obra, por não ser Qorpo Santo ainda um gênio oficializado, carimbado com imprimatur, com livre passagem nos círculos da crítica bem pensante.

Quando os doutos aprenderão estas lições do dia-a-dia da História?

BIBLIOGRAFIA

1, 2, 4, 12 — Guilhermino César, “Qorpo Santo, do mito à realidade”, in Jornal do Brasil, 04.04.68.
3, 15 — Guilhermino César, in História da Literatura do Rio Grande do Sul, p. 143 e 22, respectivamente.
5 — Athos Damasceno Ferreira, Imagens Sentimentais da Cidade, Porto Alegre, Globo, 1940, p. 31.
6 — Aquiles Porto Alegre, in Através do Passado, Porto Alegre, Globo, 1920, p. 31.
7 — Aquiles Porto Alegre, in A Sombra das Árvores, Porto Alegre, Livraria Selbach, 1923, p. 94.
8 — Guilhermino César, A Reabilitação de uma Obra, folheto de apresentação das peças de Qorpo Santo levadas pelo teatro do Clube de Cultura.
9 — Olynto Sanmartin — o poeta Qorpo Santo, in Correio do Povo, 15.11.57.
10 — Entrevista com Lúcia Carvalho Meio, in Revista do Globo, Porto Alegre, nº 861, outubro 63.
11 — Entrevista com Athos Damasceno Ferreira, in Folha da Tarde, Porto Alegre, 27-07-64.
13 — Aldo Obino, in Correio do Povo, Porto Alegre, 27-12-63.
14 — Entrevista com Antonio Carlos Sena, in Folha da Tarde, Porto Alegre, 04-08-64.
15 — Guilhermino César, in Correio do Povo, Porto Alegre, 26-08-66.
16 — Guilhermino César, in Correio do Povo, Porto Alegre, 17-08-68.

*Caderno de Sábado, in Correio do Povo, 10 agosto 1968

segunda-feira, abril 22, 2013
 
DAMASCENO, O SINGULAR




Soube ontem – e com mais de semana de atraso – da morte do Aníbal Damasceno Ferreira, amigo e mestre de meus dias de Porto Alegre, que perde um de seus personagens mais singulares. É que meus amigos sobreviventes têm a péssima mania de não me transmitir más notícias. Assim que, só ontem, por mail do professor R. D. Castiglioni, fiquei sabendo do fato. Damasceno vinha há horas capeando com a Indesejada das Gentes e a notícia não me surpreendeu.

Tentei encontrá-lo em novembro, quando fui ao Ponche Verde, questão de mostrar meus pagos à minha filha. Não consegui. Há anos sua memória vinha rateando. Confessou-me certa vez que, quando ia para a PUC, o carro parava no sinal e ele já não lembrava para onde ia. Tentei passar-lhe alguns recursos mnemônicos, mas Damasceno os esqueceu. Marquei encontro no Tuim, por duas vezes, pedi que anotasse por escrito o nome do bar. Pelo jeito não anotou.

Damasceno foi um desses grandes vultos anônimos, que toda grande cidade abriga. Artífice discreto da cultura porto-alegrense, influenciou não poucos jovens com suas idéias peculiares. Entre eles, este que vos escreve. Foi um dos primeiros amigos que fiz quando cheguei à capital. Fui conhecê-lo na colônia de férias da URGS. Mal o vi, disse para a Baixinha, sei lá por quê: esse cara é radialista. Era. Trabalhava como sonoplasta na Rádio Universidade.

Passamos noites ao relento nas areias de Tramandaí, fugindo da vigilância de uma harpia da colônia de férias, que zelava pela castidade das universitárias nas dependências da colônia. Não podia namorar nos quartos? Pegávamos cobertores e íamos com as meninas para a praia, onde era muito melhor dormir. Depois disso, passei a freqüentar a universidade livre da Praça da Alfândega, em Porto Alegre.

A morte de Damasceno é também a morte de uma Porto Alegre que não mais existe. A praça da Alfândega reunia intelectuais, poetas (Quintana era um de seus assíduos freqüentadores), jornalistas e outros marginais. Varávamos as noites rumo à madrugada, discutindo desde a enteléquia aristotélica até esse estranho pendor que as mulheres têm pelos imbecis, como diria – e disse – Machado. Uma taça pão-e-manteiga na lanchonete do Matheus nos aquecia nas noites de inverno. Nas madrugadas de sábado havia um ritual a cumprir: pegar o Correio do Povo, que saía quente da gráfica e cheirando a querosene, para ler o Caderno de Sábado.

Certa vez, discutindo sempre o eterno feminino, vi pombas ciscando na calçada. Ué, pomba não é de andar à noite, como certas almas perdidas! Já era dia e não havíamos notado. “As mulheres são cruéis” – dizia um de meus interlocutores. Pode ser. Mas desta face das musas fui poupado.

Foi a melhor de minhas universidades. Ali, recebi bibliografias que nenhum curso acadêmico me deu. Assim como Dyonélio Machado me introduziu nas leituras de Renan, Damasceno foi meu guia nas leituras de Sterne, Thackeray, Swift e Casanova. Era pessoa de escassa formação escolar mas de grande cultura, particularmente no que dizia respeito à literatura inglesa. Freguês de livreta de Nelson Rodrigues, ensinou-me a distinção entre humor e piada, distinção que há muito se perdeu no Brasil, a ponto de se considerar humorista até mesmo um medíocre como Chico Anísio.

Machadiano irremediável, tentou introduzir-me também na leitura de Machado e de Guimarães Rosa. Claro que li os dois. Mas Damasceno era leitor militante, queria mais que leitura. Queria apreço. Nestes dois últimos casos, não levou.

Com meu afastamento de Porto Alegre, tornou-se meu correspondente passivo. Sempre lhe escrevi, onde quer que estivesse vivendo, Estocolmo, Madri ou Paris. Sem nunca receber resposta. Talento sobrava ao Damasceno. Mas tinha medo de emitir opiniões por escrito ou publicamente. Aceitei esta sua condição e nunca esperei retorno. Não responder era mais uma singularidade sua.

Nas últimas décadas, tentei introduzi-lo na era informática. Em vão. Como os de sua geração, Damasceno mantinha uma distância intransponível em relação ao computador. De nada adiantava dizer-lhe que facilitava a comunicação entre pessoas distantes. Em novembro passado, quando lhe falei de minhas publicações eletrônicas e das vantagens do e-book, respondeu-me um tanto cético com a época:

- É, qualquer dia o homem vai a Júpiter.

Não vai, não, Damasceno. É uma impossibilidade física. Mas os livros de tua época têm seus dias contados. O livro continuará existindo, mas com outro suporte. Livreiros e editores não gostam disto. Mas lutar contra o livro eletrônico é o mesmo que lutar contra o amanhecer. Não há sentido algum em investir 50, 100, 200 mil reais na publicação de um livro, quando este livro pode ser publicado a um custo próximo de zero, e pelo próprio autor, que dispensa a aprovação ou censura do editor.

Inseguro até a medula, Damasceno tinha medo até mesmo de sua própria defesa. Ontem, publiquei uma entrevista que extraí a fórceps. Nunca vi alguém sofrer tanto ao dar um depoimento sobre si mesmo. Damasceno sofria fisicamente, sua úlcera o corroía por dentro. É possível que seja a única entrevista que deu em vida.

Quando mostrei-lhe o artigo que escrevera em sua defesa, tremeu por dentro. Tens coragem de escrever tudo isso? Para mim não era uma questão de coragem. Nunca precisei de coragem para dizer o que penso. Sem falar que, quando brandimos o óbvio, coragem é virtude que não faz falta. Coragem intelectual, a meu ver, tinha o Niemeyer, que morreu defendendo Stalin. Coragem tem o Tarso Genro, que até hoje defende o Luís Carlos Prestes. Tornar pública a vigarice de Guilhermino César, que se pretendia o descobridor de Qorpo Santo, para mim era suprema diversão, puro lazer.

Eu tinha 21 anos na época, recém saía do curso de Filosofia. Guilhermino tinha 60 e, apesar de mineiro, era uma das sumidades da cultura gaúcha, graças à sua História da Literatura do Rio Grande do Sul. Na qual faltava – ó ironia! – o Qorpo Santo. Paulo Fontoura Gastal, o editor do Caderno de Sábado, fez-me aparar algumas farpas. Me garantiu que, caso o catedrático viesse com pedradas, eu podia me esbaldar. Fui chamado, pelo professor, de “malevolência imberbe”. Quando fui responder à “decrepitude careca”, o Gastal achou que o debate já ia longe demais e o interrompeu. Nunca foi tão fácil desmontar a farsa de um medalhão.

Por acaso, eu tinha um espião bem postado, era um universitário do Belas Artes que secretariava Guilhermino. Ri por uma semana quando ele me contou o episódio. Naquela manhã de sábado, o professor vestiu seu robe-de-chambre, pegou o Correião e se dedicou a ler, com deleite, o artigo que falava de “sua” descoberta. Aos poucos foi ficando lívido. “Vanda, traz os meus sais” – pediu. Música para meus ouvidos. Eu me sentia na Lisboa de Guerra Junqueiro. Só faltava uma boa bengala para temperar o debate.

Tinha teorias peculiares, o meu mestre. Uma delas era a dos três efes, que rendeu um filme a Carlos Gerbase. Segundo esta, três apetites regiam as ações do ser humano, a fome, a foda e o fasma. Confesso que não lembro o que seria fasma, mas segundo o Damasceno era um termo grego que significaria representação. Outra teoria sua, oriunda de Platão, era a da mijada na caverna. Nesta mijada estaria a origem do ordenamento social. Se não houvesse um lugar determinado para mijar, a caverna se tornaria um lugar imundo e infecto.

“Tu estás contra toda tua geração" - disse-me há décadas. Na época, eu não entendia isto. No que não deixava de ter razão. Mesmo assim, a frase me surpreendeu, afinal nunca tive vocação para original. Por geração, eu entendia nossos contemporâneos que lêem, escrevem, discutem e lutam por suas idéias. Panta rei. Nada como uma década depois da outra para se passar a entender o que antes era ininteligível. Só mais tarde, bem mais tarde, fui dar-me conta que minha geração era visceralmente marxista.

Damasceno era um de meus três últimos correspondentes neoluditas, aos quais eu ainda escrevia em papel. Semana passada ainda, escrevi ao Damasceno, contando minha viagem à Noruega. A carta veio de volta, com um carimbo do Sedex: mudou de residência. De fato, mudou.

Damasceno tinha imaginação fértil e escreveu muito. Deve ter não poucos inéditos no baú. Nestes dias de literatura insossa, podem constituir uma surpresa nas letras gaúchas, surpresa tão surpreendente quanto Qorpo Santo.

Amanhã, a contestação à “descoberta” do professor Guilhermino.

domingo, abril 21, 2013
 
PROF. LUÍS AUGUSTO FISCHER
SE TRAI PELA PRÓPRIA BOCA



A propósito da morte de Aníbal Damasceno Ferreira, recebi do professor R. D. Castiglioni, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, este depoimento do professor Luís Augusto Fischer, publicado na Zero Hora:

Obrigação nossa, dos amigos do Aníbal: juntar suas histórias e seus textos para publicar um grande livro, um dos livros mais importantes da cultura gaúcha de todos os tempos. Pelo menos, de um dos livros mais singulares jamais concebidos em nossa terra e em nossa língua.

Primeiro os fatos: faleceu semana passada Aníbal Damasceno Ferreira, aos 80 anos de idade. Viveu intensamente o mundo literário e cinematográfico desde sua juventude. Trabalhou na rádio da Universidade, no tempo em que ela era um dos eixos da cultura exigente de Porto Alegre, e depois resignou-se a completar seu tempo de serviço como funcionário federal no Instituto de Física da UFRGS, onde comandava um modesto setor dedicado a filmar experimentos. Foi professor de cinema na Famecos, da PUC, por décadas, e ali cevou uma penca de jovens cineastas. Trabalhou em cinema, inclusive com Teixeirinha. Escreveu contos e ensaios para publicações variadas, de forma assistemática, mas sempre com uma verve muito, mas muito rara. Era uma figura humana delicada e um leitor peculiaríssimo – erudito autodidata, conhecedor de grandes autores (como Machado de Assis e em Nelson Rodrigues), se dizia um “tarado semântico”, porque vibrava com frases, com giros de linguagem.

Exemplo que ele recitou mais de uma vez era a abertura do conto "Famigerado", do Guimarães Rosa. Ele dizendo com sua voz fraca e olho vivo: “Foi de incerta feita – o evento. Quem pode esperar coisa tão sem pés nem cabeça? Eu estava em casa, o arraial sendo de todo tranquilo. Parou-me à porta um tropel. Cheguei à janela.” Dizia as palavras e comentava: “Entende como é? Eu não sou especialista em literatura, não sou crítico literário – eu sou um tarado semântico”.

Minha história com ele: creio que pela primeira vez nos cruzamos na redação do breve mas valente Pasquim Sul, sim, isso mesmo, o próprio Pasquim carioca, que teve um encarte feito em Porto Alegre por uns meses. Foi quando Brizola estava na poder lá no Rio, depois de 83, que ele bancou o Pasquim de lá, e que aqui rolou essa espécie de sucursal, comandada pelo Cói Lopes de Almeida, com o Carlos Feyo, o Marcos Klassmann e outros. Eu colaborei umas quantas vezes, me arriscando e querendo participar como todo guri de 20 e poucos anos. E lá o Aníbal fez uma coluna que parodiava o colunismo social, com a famosa verve dele.

Anotações

Passamos a conviver de perto aí por 88, almoçando mais de uma vez por semana juntos, no bar do Antônio, lá no Campus do Vale. Era uma festa para mim e para outros colegas, que com o tempo foram se chegando, Homero Araújo, Ruben Daniel Castiglioni, sem falar nos professores da Física, como o Joqa Medeiros e o Lívio Amaral, mais o querido Joaquim Fernandes, que vinha da Veterinária para conversar de literatura e coisas inteligentes com o Aníbal.

(E então, depois desses almoços, eu chegava em casa e anotava o que ao Aníbal tinha dito. E me arrependo de não ter escrito mais, claro)

O que ganhei nesse convívio não tem conta. Para não ir muito longe: meu doutorado, sobre a crônica de Nelson Rodrigues, teve Aníbal como origem e como orientador-mor, aquele com quem a gente de fato conversa para saber se está tudo bem. Ele, acho, nem formado em curso superior era (creio que era jornalista provisionado), mas tinha o estatuto, para mim, de doutor, o cara capaz de dar os toques necessários, de acompanhar no percurso, de vibrar com as descobertas do outro.

O Aníbal era da raríssima tribo dos bons conversadores. Tenho a impressão de que o centro de sua vida mental era mesmo a conversa, o papo com os amigos, como dizem ter ocorrido com Macedônio Fernández, amigo e interlocutor indispensável de Jorge Luis Borges. Isso transformava cada almoço, cada cafezinho (o dele sempre com muito leite, para não provocar uma gastrite que tinha), num espetáculo irrepetível. O que eu ouvia ali era ouro.

Dou outro exemplo: um belo dia, me pergunta o Aníbal se eu já tinha lido uma novela, meio ruim mas muito interessante, chamada Estricnina, publicada em Porto Alegre em 1897. Não, claro que não. Não tinha lido muita coisa, que fui ler por indicação dele. Ele me disse que na biblioteca da Letras tinha um exemplar. Fui lá, li, me entusiasmei tanto que dei um jeito de republicá-la em 1987, cem anos depois.

Qorpo que sobe

Em meados dos anos 50, o Aníbal adoeceu gravemente e passou meses de cama. Neste tempo, ele leu muito, até mesmo coisa que não parecia merecer atenção. Um parente dele, Athos Damasceno Ferreira, primo do pai, alcançou alguns livros; entre eles, uns números de uma esquisitíssima publicação do século 19 – a Ensiqlopédia ou Seis Meses de Uma Enfermidade. O autor se assinava Qorpo-Santo e gozava, na altura, de uma fama de maluco total e irremissível: ninguém, nos anos 1950, o levava a sério como escritor, como dramaturgo, nada. Era um maluco da cidade, um folclore, como se diz.

Pois bem: o Aníbal leu e julgou encontrar ali algo que ele prezava demais – a singularidade. Qorpo-Santo podia ter sido um maluco, mas tinha um quê de genial. Assim que pôde, Aníbal copiou, batendo a máquina com papel-carbono, algumas das peças do louco, e espalhou esse material entre os bem-pensantes do momento, jovens e velhos, para badalar o cara. Ele entusiasmadíssimo, querendo montar as peças, mas não encontrava muito eco entre os intelectuais e críticos com poder de fogo. (Angariou simpatias com gente da geração dele, como Antônio Carlos Sena e Flávio Oliveira, que lideraram a encenação, anos depois)

A conjuntura era favorável em vários aspectos; a UFRGS ganhava um flamante curso de Arte Dramática; no domínio da Literatura, Guilhermino César escrevia uma nova história da literatura sul-rio-grandense. Aníbal tentou esses dois caminhos para angariar prestígio para o Qorpo, mas não rolou. (A história desse percurso requer um livro inteiro para ser contada, tendo sido relatada já por Janer Cristaldo, que a viveu de perto; eu mesmo pesquisei e coletei muita informação sobre os bastidores, mas ainda não tive o vagar necessário para tal e tanto.) Guilhermino desconsiderava Qorpo-Santo como escritor, até então, e disse isso ao Aníbal.

Mas meu amigo insistiu, e em 1966 foi levada a palco a obra de Qorpo-Santo; por total acaso, a montagem foi convidada a participar de um festival de teatro no Rio de Janeiro, então a capital cultural indisputada do Brasil; e lá aconteceu de o grande crítico carioca da época, Ian Michalski, assistir e vir a público no dia seguinte, por escrito, para dizer que daquele momento em diante toda a história do teatro brasileiro deveria ser revista porque havia sido descoberto, no Sul, um gênio, um precursor do Teatro do Absurdo, um tal de Qorpo-Santo.

O que aconteceu na província, depois? Bem, todos aqueles a quem o Aníbal tinha distribuído, infrutiferamente, cópias das peças, agora queriam dizer que sim, tinham visto que ali havia valor estético, mas sabe como é, não tinha dado chance de dizer em público isso, coisa e tal. E o Aníbal, que podia nessa hora triunfar e chamar todos de patetas, apenas se reconfortou intimamente, porque via enaltecido um cara que merecia, o maluco do Qorpo-Santo.

Um complemento dessa história, para mostrar o caráter do Aníbal. Como disse, juntei material sobre esse percurso, entrevistei meio mundo, bolsistas meus tiraram xerox de debate jornalístico da época, mas me faltava um depoimento – o dele mesmo, com quem eu almoçava sempre, o protagonista mais decisivo de tudo. Pedi mil, duas mil vezes para ele me dar entrevista, gravada, para eu poder contar isso direitinho.

Sabe o que me disse o Aníbal? Que não ia nunca me dar entrevista sobre isso. “Mas por quê, meu deus do céu, se eu falo contigo o tempo todo, se eu sei de detalhes, tu mesmo me contaste? Se eu sei muito sobre o fato de o Guilhermino ter negado valor ao Qorpo-Santo na hora e depois ter reconhecido seu valor, a ponto de escrever um livro sobre o autor, mas apenas depois da consagração no Rio?”.

E ele: “Porque a outra parte não vai poder contar a sua versão”. De fato, Guilhermino passou os últimos anos incomunicável, e veio a falecer em 93, sem nunca ter sido confrontado publicamente com os fatos, sem nunca ter sido interpelado por aquela mudança de opinião e sobre o papel do Aníbal nisso tudo. E o Aníbal, que matou no peito uma desfeita grande do mesmo Guilhermino (que não concedeu ao meu amigo o reconhecimento de ter sido o verdadeiro primeiro divulgador do maluco), preferiu terminar seus dias sem falar isso tudo em público.


O depoimento é gentil, mas fajuto. Guilhermino foi confrontado, sim, com os fatos. E foi interpelado publicamente, em 10/08/1968, no artigo "Qorpo Santo e os hipotrélicos", por este que vos escreve, nas páginas do Caderno de Sábado, do Correio do Povo. Amparado por entrevistas dos donos das bibliotecas privadas em que Guilhermino pesquisou e que possuíam exemplares da obra de Qorpo Santo, neguei a autoria da descoberta pelo safado professor mineiro e a atribuí a quem de fato descobriu o dramaturgo, o Aníbal.

Nos sábados seguintes, Guilhermino tentou defender-se com seis artigos, ao longo de seis semanas. Não conseguiu. O professor Fischer não pode ignorar estes artigos. Aliás, afirma em seu artigo: "Como disse, juntei material sobre esse percurso, entrevistei meio mundo, bolsistas meus tiraram xerox de debate jornalístico da época".

Mais ainda: "A história desse percurso requer um livro inteiro para ser contada, tendo sido relatada já por Janer Cristaldo, que a viveu de perto; eu mesmo pesquisei e coletei muita informação sobre os bastidores, mas ainda não tive o vagar necessário para tal e tanto.) Guilhermino desconsiderava Qorpo-Santo como escritor, até então, e disse isso ao Aníbal".

O professor se trai pela boca. Pelo jeito, pesquisou de relancina, pois admite não desconhecer meu relato. Vai ver que, por esprit de corps, não quis manchar a biografia do pavão mineiro. Quando um pesquisador ignora tais fatos, vão mal as pesquisas literárias na universidade. Além do mais, Qorpo Santo não leva hífen. O professor não consegue nem mesmo nominar corretamente o objeto de seu artigo.

 
In memoriam Aníbal Damasceno Ferreira:
UM VIAJANTE A XAVIER DE MAISTRE *



Quem é Aníbal Damasceno Ferreira, o homem que salvou Qorpo Santo do pó das bibliotecas e o trouxe para nosso século? Seu nome, não vamos encontrá-lo nas bibliografias da literatura gaúcha, et pour cause: Aníbal não tem livro algum publicado. Em Quem é quem nas Letras Rio-grandenses, de Faraco & Hickmann, 2ª edição, no lacônico verbete que lhe é conferido falta o essencial: sua contribuição à cultura brasileira e universal, a prospecção e a trazida à luz da obra qorpo­santiana.

Infelizmente — como dizem Faraco & Hickmann — ainda não reu­niu seus trabalhos em livro. Sua atividade literária pública e, vamos dizer assim, diurna, se resume a publicações esparsas, artigos e contos. Autodidata, tem como influências Sterne, Thackeray, Sthendal, Swift, Montaigne, Camões e, cá entre nós, Machado de Assis, Guimarães Rosa e Nelson Rodrigues, o das crônicas, sobretudo. Ou seja, estamos diante de um homem que cultiva o humour, em sua mais nobre acepção. Fora isto, este anônimo pesquisador tem sido o responsável por prospecções bem mais contemporâneas. Não poucos jovens devem sua iniciação literária a seu paciente trabalho de sapa junto aos meios de divulgação gaúchos. Que o levou a procurar Qorpo Santo?

— A singularidade, nada mais que isso!

— Tudo cabe dizer de Qorpo-Santo. Dêem-no como genial ou louco, deve-se, no entanto, ressaltar primeiro a sua essencial qualidade, a qual tem muito maior importância do que quer que se lhe aponte: singula­ridade. Só depois, conforme pode vir a pedir o caso, pronunciem-se teatrólogos e psiquiatrias. Nunca antes. Porque o singular, sob pena de o não ser, é, por excelência, o inconceituável — uma categoria a parte, que resvala às mais argutas especulações.

Constata-se, já pela miúda e direta observação do cotidiano, já por via de eruditas metafísicas colocações, que o singular comove bem. Nada mais se sabe. O resto é silêncio ou hipóteses. Querem uns que seja o singular um efeito poético. Outros, uma forma de humour e uns terceiros, extravagância ou loucura. Falsíssimas conjeturas. Para ser poesia é o singular demasiado gaio — falta-lhe a leveza, o jeito etéreo, o “oomph” e todas aquelas graças honestas haventes na obra de arte. Humour, também não. Humorismo pede sentimento e, mínimo que seja, traz sempre, bem lá no fundo, um nadinha de reflexão. Loucura? De jeito nenhum. Esta constrange, desaponta, choca. Vê-se, portanto, que qualquer definição seria nula rem. Demais, o sentido da singulari­dade está em si mesmo, acima das razões e das sem-razões. Tentar captá-lo é querer vau a pé enxuto no rio de Heráclito. Melhor alvitre, pois, é ir-se a gente nas águas de Bergson.

Aníbal Damasceno pretende pois captar Qorpo Santo sem outros instrumentos que não a intuição. Assim sendo, sem preocupações de ordem conceitual, que seria então a singularidade?

— Ainda que mero artifício de estilo, só para fins de digressão, vamos aceitar que a singularidade ou o singular seja, forçando urna linguagem de feição roseana, “o espantante agradável”, Machado de Assis por certo não estava longe de pensar assim, quando definiu o singularíssimo Arthur de Oliveira como “um saco de espantos”. Do mesmo modo tampouco o está Athos Damasceno Ferreira, que em um de seus livros colocou esse mesmo Arthur ao lado de Qorpo Santo. Agora o que vai espantar, mas não de modo agradável, é o fato de se poder colocar lado a lado, porque singulares, homens e mulheres dís­pares, de todos os tamanhos que, por sua obra, condição e exercício, nada tenham de comum entre si.

- De verdade, em termos de singula­ridade, não seria impertinente meter dentro da mesma caixa tipos como Salvador Dali, Idi Amin Dada, Nelson Rodrigues, Guimarães Rosa, Chacrinha, Jayme Ovale, Neusinha Brizola, Qorpo Santo, Genet, Te­nório Cavalcanti, Ítala Nandi ou Madame de Stäel. Todos esses, inde­pendentemente da míngua ou do proveito com que hajam obrado, dentro ou fora de seu mister, primam antes de tudo por espantarem de um jeito assaz curioso. Constróem a canoa a seu modo, com o número de paus que lhes dá na cabeça, na mais peculiar e nunca vista maneira.

— Parágrafo único: Joaquim Manoel de Macedo, Sílvio Santos, Magalhães Pinto. Agnaldo Rayol, José de Alencar, Margareth Thatcher e o presidente Médici são parceiros de outra caixa.

Damasceno imagina o horror de um acadêmico vendo Guimarães Rosa ao lado de Chacrinha, Madame de Stäel ao lado de Idi Amin Dada. Tenta então mostrar-nos alguns gestos singulares.

— Olhem bem Jayme Ovale, certa madrugada: telefonou a Getúlio Vargas para agradecer-lhe o que, segundo entendia, era um grande benefício — a vida: “Viver é um grande benefício, como não tenho a quem agradecer, agradeço a você”. Ou Lima Barreto, o cineasta. Pon­dere-se esta sua declaração a uma revista da época, quando se refes­telava com a vitória de Cannes: “Sempre odiei a humanidade. Fui feio e pobre, não tive namoradas e não andei de bicicleta, mas me vinguei, porque os caras que tiveram tudo isso não fizeram o Cangaceiro... E eu fiz”. Já Niemeyer vai mais longe e beira a molecagem, mas ainda assim e antes de tudo singular. Contam que depois de terminar a cons­trução de Brasília subiu ao terraço de um edifício e de lá atirou, para baixo, dentro de uma caixa de papelão, uma certa coisa...

- Não menos singular, mas até um pouco trágica, visto o sentimento de frustração ante o irremediável, é a atitude do cidadão inglês, em extremo pontual, todo dado a formalidades e festas de aniversário, que aos amigos sempre se queixava: “Ah! se meus pais tivessem consultado o relógio naquela precisa hora!” Muitas são as piadas que fazem rir. Algumas podem até marcar pela inventividade da forma ou pela sutileza da idéia, mas raras terão a singularidade desta carta que Millôr Fernandes atribuiu a Van Gogh: “Meu querido irmão: como você vive dizendo que eu não lhe dou ouvidos, estou lhe enviando junto a esta...”

— Também do mesmo sagaz Millôr, valendo igual citação nestes pro­pósitos, é aquele estranho lamuriar-se do conhecido Corcunda de Notre Dame: “Está bem, está bem... Eu sei... Mas se não me querem mais, por que não vendem o meu passe para Westminster?”

- Bem ali, pertinho, do outro lado do Canal da Mancha, por muitos séculos hão de viger dois casos. Um, o do impertinente polido rapaz que figurou de terrorista durante o real desfile, alvejando sua Majestade Britânica com balas de festim; e o outro, o do general que à sombra da mesma excelsa Coroa fez-se proclamar Lord Protetor da República. (Dar-se-á que Geografia e singularidade....)

Onde, então, esta singularidade em Qorpo Santo?

- Em tudo. Nos versos de marcada feição surrealista com que assus­tou a família e os intelectuais da época “Dei um tiro de pólvora e cobri os anjos de letras”; no retrato que tirou diante do mapa-mundi, com um globo terrestre na mão; na estranhíssima idéia de fazer um exército composto só de mulheres grávidas; no anúncio luminoso que bolou para enfeitar o frontispício de sua loja, colocando velas acesas dentro de uma caixa de vidro; na mania de entrar e sair de casa pela janela; nas reformas que pretendia fazer, do código civil, da constituição e da gramática portuguesa; no estrambótico do nome e — talvez a sua maior insolência — nestes versos em que, para perplexidade da Província, advertiu uma baronesa da sociedade local:

“Tenho um umbigo
Bem retovado
De couro rapado
De ponta aguda
Que põe muda
Qualquer mulher
Que mete a colher
Não sei aonde”

Paradoxalmente, todas essas extravagâncias que indispuseram Qorpo Santo com a intelectualidade gaúcha por mais de um século — e que mais tarde levariam Guilhermino César a nem sequer mencionar-lhe o nome na sua História da Literatura do Rio Grande do Sul — é que fizeram Damasceno se apaixonar pelo dramaturgo de Triunfo, mesmo sem conhecer seus livros. Quando encontrou estes, depois de andar seca e meca, a paixão foi ainda maior, pois já no primeiro contato com os textos logo percebeu que tinha diante de si uma individualidade absolutamente singular, que em nada se parecia com os beletristas contemporâneos.

— Essa veia de bizarro que outra coisa não é senão um prestigioso sinal de singularidade, anima por vezes a obra e a vida dos grandes. Xavier de Maistre viajou ao redor do quarto. Swift, pelo jornal, ensinava a fritar crianças na banha. Nelson Rodngues era fascinado pelas dores físicas e adorava escarradeiras. Já bem de vida, com o bolso cheio, para compensar os tempos de pobreza, em vez de gastar em coisas suntuá­rias, esbanjava andando de táxi. Quando vinha de jantar no Nino’s, ia para a cozinha comer pão com ovo.

— E quem não se lembra do aborto de Virgília, cujo embrião pereceu naquele ponto em que a cara de La Place não se distinguia d uma tartaruga? O leitor de Borges, por sua vez, sempre terá presente aquele sinistro Funes, vítima da boa memória, que levou exatamente vinte e quatro horas recordando o dia anterior. Mas será em Guimarães Rosa — o mais singular de todos — que estes exemplos abundarão. Abra-se, ao acaso, um exemplar de Tutaméia: “Tsing-Lao prosperou, teve e fez sua chácara pessoal (...) Morava, porém, era onde, em si, no cujo caber de caramujo, ensinado a ser, sua pólvora bem inventada”. Ou ainda: em defendida distância dali morava vi uma moça, Lindalice no fino chamar-se”. Ou mesmo: “O trágico não vem a conta-gotas”.

Mas o descobridor de Jozé Joaquim de Campos Leão não se recusa a ver outro lado da questão, aquele pelo qual o teatrólogo é valorizado.

— Deixado de parte esse aspecto da excentricidade, que é o que mais me fascina em Q.S., há também o lado “rigorosamente teatral e literário”, que tanto preocupa os profissionais da crítica. É claro, analisada formalmente, com rigor, a partir de uma teoria da literatura, a fortuna qorpo-santense, toma uma dimensão e um significado que transcendem isso que eu, caprichosamente, chamo de singularidade... ainda assim prefiro o diletantismo da crítica impressionista.

— O bem grave é que a percepção do singular requer também singularidade e este dom, infelizmente, nem sempre orna o espírito das pessoas comuns, lúcidas-sensatas, cuja mente se compraz naquela coerência bonita que rege e concerta as coisas conchavadas e certinhas. A tais pessoas, sabe-lhes mal o não habitual, o inusitado, o insólito. É de ver-se o horror com que torcem o nariz quando lhes surge diante dos olhos algo não previsto, dentro dos limites do normal ululante. Não é de estranhar, portanto, que os singulares com elas vivam em eterna birra e turra. Swift, para muitos, foi apenas um grosseiro ogre. Laurence Sterne, um palhaço charlatão. Nelson Rodrigues, um tarado. Salvador Dali, um mesquinho mago de feira. O estilo barroco, por exemplo, que marca um período de ouro na História das Artes, foi visto pela maioria dos coevos como algo pretensioso e estapafúrdio, tanto que o nome “barroco”, ao designar os adeptos da novidade, valia por uma achincalhação.

Até na Inglaterra, onde os nobres súditos são dados ao culto da excentricidade e da extravagância, notam-se às vezes restrições à singularidade. Pois não foi um escândalo quando alguns ímpares pares, no Parlamento, em discursos inflamados, ameaçaram devolver suas medalhas só porque Sua Majestade resolvera condecorar os singularíssimos Beatles? Em tempos que já lá vão foi ainda pior. A reserva que hoje, por amenas e polidas maneiras se faz aos introdutores de novidades, tinha antes um caráter de execração. Era dar sérios indícios de má índole ousar alguém a reforma do que quer que fosse. Leia-se este lugar de Guimarães Rosa: “Originariamente, insolência designaria apenas: sin­gularidade, coisa ou atitude desacostumada, insólita; mas como a no­vidade sempre agride, daí a evolução semântica para: arrogância, atre­vimento, atitude desaforada, petulância, grosseria”.

— Calcule-se então o que não deve ter passado o pobre Qorpo Santo, nesta mui leal e valerosa cidade de Porto Alegre, capital da Pro­víncia de São Pedro do Rio Grande do Sul, há cem anos! O infeliz só podia ter o fim que teve: no hospício.

Como vê Aníbal Damasceno a influência de Qorpo Santo sobre sua época e sobre o teatro contemporâneo?

— Acho que Qorpo Santo, pelo fato de ter vivido à margem, sem­pre segregado, naquelas condições que sabemos, com fama de louco, hostilizado por todo mundo, inclusive, talvez, pela família e pelos ami­gos, dificilmente poderia ter exercido qualquer influência sobre a socie­dade de seu tempo. Não há informação de que suas peças tenham sido encenadas e se foram, é quase certo que não agradaram. Que vá influir no teatro que se faz atualmente também é improvável. A dramaturgia evoluiu muito. As propostas que ele trouxe, embora revolucionárias na época, hoje não constituem mais nenhuma novidade e já têm outras for­mulações. Mas isso, em absoluto não diminui a grandeza de seu legado, onde vejo dois fatos transcendentes que sempre se impõem à meditação: uma obra de arte que vingou e glória póstuma.

Esta incompreensão pelos contemporâneos, este desprezo pelo talen­to — ou, enfim, pela singularidade — é o que mais comove Aníbal Damasceno no caso Qorpo Santo.

— O inditoso mestre-escola arrastou penosa existência por estes pagos sem jamais encontrar quem lhe apresentasse protestos de elevada estima e distinta consideração. Intelectuais de boa ou má cepa, plebe, crianças, todo mundo sempre o teve por rematado louco de se atar. Sobre o que ele fez, disse ou escreveu, nunca uma palavra que não fosse de ironia ou reproche. E assim veio sendo até há alguns anos, quando a imprensa nacional, passou a anunciá-lo como a maior descoberta da dramaturgia brasileira. E que de galantes apelidos não o cobriram? O Jarry brasileiro, o Ionesco gaúcho, o Genial, o Sensacional, o Profeta, etc., etc.

Que Qorpo Santo seja louco ou não, Damasceno crê que isso nada subtrai ou acrescenta à sua obra. O que importa a sanidade mental de um artista — pergunta-se — se a sua obra, de um jeito ou de outro, sempre diz alguma coisa?

— Nada. O teatro de Qorpo Santo tem, pois, de ser visto apenas como hoje o podemos ter, no palco ou no texto, absolutamente a parte das circunstâncias que cercaram a vida e a pessoa de seu autor. E mesmo o que daí se viesse a dizer, pelo menos para mim, deve ficar para depois, pois nesse extraordinário dramaturgo, tudo — seus defeitos e vir­tudes — hão de ser sempre meros aspectos de sua singularidade.

* Entrevista publicada em dezembro de 1983, na revista Travessia, do Curso de Letras da Universidade Federal de Santa Catarina. A foto é de Marcos Nagelstein, da Agência RBS