¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, maio 20, 2013
 
Ainda sobre consumo:
UM BOM DIA PARA COMPRAR *



Madri, vésperas de Natal. Já não lembro o ano. De repente, tomo consciência de algo trágico: não tenho uma mísera garrafa de vinho no hotel. Desci com a pressa que a situação exigia e tomei o rumo da Puerta del Sol, questão de encontrar uma casa qualquer onde suprir-me.

Melhor ficasse no quarto. Os madrilenhos têm fama de callejeros. Não são pessoas de ficar em casa assistindo televisão e este é um dos encantos de Madri. Mas em certas datas exageram. As ruas estavam tomadas por uma multidão ávida de consumo, lutando ombro a ombro para entrar nas lojas e comprar o que vissem pela frente, fossem perus ou champanhes, queijos ou presuntos, livros ou CDs, enfim, qualquer coisa que estivesse ao alcance da mão e do bolso. É Natal, Cristo nasceu, é preciso comprar.

O consumo nas capitais européias não é coisa de Natal, mas de todos os dias. Havia no entanto uma gula, quase uma histeria, no comportamento dos madrilenhos, que não recordo ter observado em nenhuma outra cidade ou data. Como se o fim dos tempos fosse amanhã e o melhor a fazer fosse desfrutar o hoje. Amarrotado pela multidão, eu remava como podia para ver se salvava meu modesto vinho de cada dia.

À força de braços e empurrões, consegui salvá-lo. Confesso que tais histerias não me fascinam. Não costumo dar presentes no Natal e tampouco os recebo. Ateu, não tenho razão nenhuma para celebrar o nascimento de nenhum deus. E se as tivesse, não seria comprando que o celebraria. Sempre me mantive afastado desta corrida desesperada às lojas em um dia que se deveria reverenciar a pobreza e o desprendimento. Aliás, não gosto de datas. Alegria, a meu ver, não pode ser evento marcado em agenda.

Mas o pior estava por vir. Ao emergir da multidão desvairada, com meu humilde Rioja debaixo do braço, me deparei na rua com uns dez ou doze gatos pingados católicos, empunhando faixas e cartazes berrando frases agressivas contra a fúria consumista dos madrilenhos. Ora, se o que era festa religiosa virou orgia pagã, isto é uma decisão tomada, consciente ou inconscientemente, por cidadãos de um estado laico. Que mais não seja, ao correr dos séculos, a Igreja cobriu com celebrações católicas o que era ritual pagão. Se padres ou fiéis querem celebrar o nascimento de seu deus com frugalidade e recolhimento, que o façam. Disto ninguém os impede. Mas para que estragar a festa de quem sente prazer em consumir?

Quem lê estas linhas e não me conhece, já deve estar concluindo, que além de consumista ferrenho, sou defensor fanático do consumismo. Longe disso. Vivo com muito pouco, guardo distância dos templos de consumo e, até hoje, com mais de meio século de jornada, jamais entrei em um shopping center. Mas que consumo é salutar, isto não se pode negar. Aqueles espanhóis quase brigando a tapas pelo supérfluo, com sua fome desmesurada de comprar, estavam garantindo emprego a operários e camponeses nos mais longínquos rincões do país e do continente.

Um peru ou um presunto, dez garrafas de vinho ou vinte de champanhe, certamente não representarão nada no padrão de vida do trabalhador espanhol ou europeu. Mas quando a histeria natalina multiplica essa demanda por dez, vinte, cem mil ou um milhão, isto faz uma senhora diferença na economia de um país. Minha singela garrafinha terá rendido centavos de peseta - se tanto - a cada um dos muitos operários que mourejaram para extrair o vinho da terra e fazê-lo chegar a meu palato. Mas o furor dos madrilenhos multiplicava esses centavos por milhões. O consumo muda então de figura e transforma-se em elemento constitutivo de bem-estar. Os papa-hóstias que condenavam a alegria dos madriles com seus cartazes inquisitoriais, estavam em verdade lutando contra centenas de milhares de horas de trabalho e por maiores índices de desemprego na Espanha.

Por estas e por outras, vejo com profunda desconfiança a proposta com a qual venho sendo bombardeado via e-mail, a do Buy Nothing Day / No Shop Day. Ou seja, um dia de protesto contra o consumo compulsivo e a desigual distribuição de riquezas no Ocidente, a ser celebrado em fins de novembro na Europa, Estados Unidos, Canadá e Austrália. A iniciativa é de um cidadão canadense, Ted Dave, profissional do ramo da publicidade. O suficiente é suficiente – este é o slogan da campanha. Cansado de comprar e induzir pessoas a comprar o supérfluo todos os dias do ano, ao que tudo indica o publicitário quer fazer penitência e convida o planeta todo a partilhar de seu dia de abstenção. Justifica seu convite empunhando o Human Development Report, segundo o qual 86% das compras para consumo pessoal são feitas por 20% da população. Para o publicitário penitente, soa como pecado que estes 20%, com seus padrões de compra, gerem emprego para milhões de pessoas que garantem este consumo.

Será suficiente o suficiente? Pode ser, mas quem gera riqueza é o supérfluo. Vinho ou champanhe, trufas ou foie gras não constituem exatamente necessidades. No entanto, no dia em que o Ocidente decidir boicotar estes supérfluos, o que vai faltar na mesa de milhões de europeus será o necessário. O socialismo, filho dileto do cristianismo, nasceu desta repulsa católica ao dinheiro e à riqueza. O regime gerou a miséria infamante dos países onde foi implantado, onde nem mesmo o necessário estava ao alcance de todos.

Para mim, que celebro o Buy Nothing Day quase todos os dias do ano, a idéia poderia até soar como simpática. Mas não soa. Mauvaise conscience de publicitário de Primeiro Mundo não me comove. Em todo caso, se vingar o dia de nada comprar, será uma ótima ocasião para comprar algo, sem o atropelo dos consumidores compulsivos.

* 17/09/1999