¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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terça-feira, maio 21, 2013
 
PASTANDO NO CAMPUS


As revoluções começam com maiúsculas, continuam com minúsculas e acabam entre aspas, escreveu Ernesto Sábato. É espantoso ver ainda nos dias de hoje – quase um século após a Revolução de 1917, 24 anos após a queda do Muro, 22 anos após o desmoronamento da União Soviética – quem ainda defenda o socialismo. No entanto, aí estão. Devo ser um dos únicos jornalistas no Brasil – se não o único – que leu Panaïti Istrati, o escritor romeno de expressão francesa, que em 1928 viajou pela União Soviética com o escritor cretense Nikos Kazantzakis.

Foram de Kiev a Moscou, de Leningrado a Murmansk, através do Cáucaso e da Armênia. Ambos viam miséria por todo lado. Depois, sozinho, Kazantzakis segue da Sibéria até Vladivostok e Turquistão. O cretense, um deslumbrado que tinha como ídolos figuras tão díspares como Cristo, Lênin e Buda, dizia que não se faz omelete sem quebrar os ovos. Já Istrati, com sua desconfiança inata de camponês, dizia só ver ovos quebrados e nada de omelete.

Em 1929, Istrati publica Vers l’autre flamme, primeira denúncia do stalinismo no Ocidente. A recusa ao novo dogma é tão traumática que, tendo seu livro publicado em Paris, naquele ano, uma segunda edição só surgiria na mesma cidade em 1980. Suas Obras Completas são publicadas pela Gallimard, exceto Vers l’autre flamme, cujos originais levam Romain Rolland, seu padrinho literário em Paris, a aconselhá-lo:

“Isto será uma paulada a toda Rússia. Estas páginas são sagradas, elas devem ser consagradas nos arquivos da Revolução Eterna, em seu Livro de Ouro. Nós lhe estimamos ainda mais e lhe veneramos por tê-las escrito. Mas não as publique jamais”.

Não foram muitos os escritores a intuir que não se estava precisamente ante uma revolução, mas ante uma nova religião. Entre estes, poucos foram tão precisos na denúncia do novo dogma como Nikos Kazantzakis, que acaba abandonando sua teoria da omelete. No relato de sua peregrinação à Rússia — Voyages — Russie —, diz o cretense que pouco a pouco a luz se fazia em seu espírito. Para ele, todos os apóstolos do materialismo davam às questões respostas grosseiras, de uma evidência simplista. Como em todas as religiões, eles buscavam divulgar essas respostas, tentando torná-las compreensíveis para o povo. Kazantzakis reconhece então, na Rússia, a existência de um exército fanático, implacável, onipotente, constituído de milhões de seres, que tinha em mãos e educava como bem entendia milhões de crianças.

Este exército, diz o cretense, possui seu Evangelho, O Capital. Seu profeta, Lênin. E seus apóstolos fanatizados que pregam as Boas Novas a todas as gentes. Possui também seus mártires e heróis, seus dogmas, seus padres apologistas, escolásticos e pregadores, seus sínodos, sua hierarquia, sua liturgia e mesmo a excomunhão. E sobretudo a fé, que lhe assegurava deter a verdade e trazia a resposta definitiva aos problemas da vida.

Não há apenas um Livro — acrescentaríamos —, como também os livros apócrifos. Assim como a Igreja Romana censura os testemunhos gnósticos que não servem à sua ambição de poder, assim censurou-se até mesmo a obra de Marx na finada União Soviética. “Nós somos contemporâneos — diz Kazantzakis — deste grande momento em que nasce uma nova religião”. Albert Camus é outra voz solitária a denunciar o caráter eclesial da nova idéia. O proletariado — diz Camus tentando entender o marxismo — “por suas dores e suas lutas, é o Cristo humano que resgata o pecado coletivo da alienação”.

Sua percepção do caráter religioso do marxismo é continuamente retomada em seus ensaio mais ambicioso, L’Homme Revolté:

“O movimento revolucionário, ao final do século XIX e ao começo do século XX, viveu como os primeiros cristãos, à espera do fim do mundo e da Parusia do Cristo proletário”.

“A revolução russa permanece só, viva contra seu próprio sistema, ainda longe das portas celestes, com um apocalipse a organizar. A Parusia se afasta ainda mais. A fé resta intacta, mas ela se curva sob uma enorme massa de problemas e de descobertas que o marxismo não havia previsto. A nova igreja está de novo diante de Galileu: para conservar a fé, ela vai negar o sol e humilhar o homem livre”.

A nova religião nascera e os intelectuais do Ocidente, os lúcidos entre os lúcidos, caíram como patinhos no engodo. Este é o grande enigma que cerca o fenômeno Stalin: como foi possível que espíritos abertos e generosos da época se tornassem cúmplices e devotos deste formidável assassino? Ou talvez não fossem tão lúcidos, nem tão abertos nem tão generosos, e sim pobres crianças em busca de um novo pai? Não será por acaso que a ladainha mais freqüente entoada a Stalin é a de Paisinho dos Povos.

Desde então, décadas rolaram sob as pontes. Houve os gulags (que datam de 1918, é bom lembrar), as primeiras purgas de 1935, o pacto Stalin/von Ribbentrop, de 1939, a affaire Lyssenko, de 1949, e o XX Congresso do PCUS, em 1956, année-charnière. Interrompido o sonho quiliasta dos intelectuais deste século, o final dos anos 50 assistiu a um congestionamento na estrada de Damasco. Não poucos escritores refizeram ou tentaram refazer suas obras, renegaram livros e suprimiram poemas de suas antologias.

No Brasil, silêncio profundo. Não temos, na história das idéias do país, polêmicas férteis como a de D’Astier de la Vigerie com Albert Camus, as affaires Lyssenko e Kravchenko, os depoimentos de Panaïti Istrati sobre a União Soviética, as reflexões de Arthur Koestler, Ignazio Sillone, Richard Wright, André Gide, Louis Fischer e Stephen Spender em Le Dieu des ténébres.

Os livros citados de Panaïti e Kazantzakis jamais foram publicados no Brasil. O de Camus, que saiu na França em 1951, só foi traduzido entre nós em 1996, quase meio século depois, quando a denúncia do autor já era supérflua. Graças ao stalinismo que grassou subterraneamente na cultura nacional, gerações e gerações ignoraram o que ocorria do outro lado dos Urais.

Intelectuais e professores que fizeram suas carreiras montados no marxismo não ousam afirmar que só escreveram bobagens a vida inteira. A bicicleta precisa continuar andando. Os últimos comunossauros do século ainda pastam nos campi do país.