¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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domingo, junho 30, 2013
 
AFFONSO CELSO 2013



A bicicleta precisa continuar andando. Depois de uma capa ufanista, em que celebrava os “sete dias que mudaram o Brasil”, a Veja desta semana nos brinda com uma arte na qual o palácio do Planalto está à beira do abismo e a bandeira do PT, uma bola da Copa e ratos rolam precipício abaixo. Cá entre nós, alguém viu algum rato rolando ladeira abaixo? A bem da verdade, só um mísero ratinho, o deputado Natan Donadon, de Rondônia.

O grosso da rataria continua se refestelando no Congresso, a começar pelo presidente do Senado. Como observa Dora Kramer, apesar de alvo de processos no STF por peculato, falsidade ideológica e uso de documentos falsos, Renan Calheiros assumiu o papel de arauto das ruas. Que Brasil mudou com Calheiros, Sarney, Paulo Maluf, José Genoíno e João Paulo Cunha imbuídos de mandato parlamentar? Contem outra.

Quanto à Copa e o PT, passam bem, obrigado. A redação da Veja deve ser composta majoritariamente de jovens. Só jovens para achar que multidões que não sabem o que querem mudam um país. Wishful thinking e nada mais. A outrora combativa Veja está se tornando a maior revista de auto-ajuda do país.

Em quem eles vão votar? – pergunta-se retoricamente a revista em reportagem. E retoricamente responde: com Dilma isolada pelo PT, a oposição flexiona os músculos para capturar a energia e dançar no ritmo das manifestações.

A Folha de São Paulo de hoje joga um balde de água fria ao otimismo desbordado de Veja. Na quinta e na sexta-feira passadas, o Datafolha entrevistou 4.717 pessoas em 196 cidades. A margem de erro é de dois pontos percentuais para mais ou para menos.

Lula é testado em duas simulações. Numa delas, vai a 45%. Nesse cenário, Marina, Joaquim, Aécio e Campos somam juntos 43% e ficam empatados tecnicamente com o ex-presidente. Haveria possibilidade de segundo turno.

Em outra cartela, quando o nome de Joaquim não é incluído, Lula tem 46% contra 37% de Marina, Aécio e Campos somados - aí o petista venceria no primeiro turno. Em que as manifestações mudaram o Brasil? Verdade que dona Dilma caiu bastante nas pesquisas. Mas queda de poste em pesquisa em pouco ou nada muda o país.

Ninguém sabe o que os manifestantes queriam e cada um interpreta o caos a seu modo. Quem disse que as multidões queriam uma Constituinte ou um plebiscito? Só no bestunto da dona Dilma e de seus áulicos. A tentativa da presidente de responder às “ruas” foi tão desastrada que não durou sequer 24 horas. Como também foi desastrada sua emenda ao soneto, a idéia de plebiscito. Daqui a três meses não se fala mais no assunto.

Quem diz que as manifestações eram contra o PT? Só mesmo a Veja. Talvez alguns grupos até se manifestassem contra o PT, mas estavam longe de constituir um número significativo. Por outro lado, um milhão pode parecer muito, mas no Brasil é muito pouco: apenas 0,5 do país.

Há práticas de Estado bem mais graves que a corrupção e que foram ignoradas pelos manifestantes. Por exemplo, o calote dos precatórios. Há gente morrendo sem receber o que lhes é devido e nem mesmo seus herdeiros alimentam esperanças de recebê-lo. O Estado não paga e estamos conversados. Não vai nisto nenhuma corrupção, a atitude do Estado está amparada por lei. Algum cartaz contra este absurdo? Que me conste, nenhum.

Adeus à pátria de chuteiras, diz Veja em título de outra reportagem. Então esperemos pelo ano que vem. A revista não se furtará a dar capas e mais capas à Copa.

Mas o mais insensato de todo este imbróglio foi a celebração da derrota da PEC 37. Nos últimos dias, constituiu bandeira de honra dos “jovens”. Duvido que algum - um só que fosse - dos manifestantes tenha lido a PEC 37. Aliás, a maioria nem deve saber o que é PEC. O fato é que a constituição de 88 não definiu muito bem a função do Ministério Público e os procuradores passaram a atribuir-se a defesa de todas as dores do mundo.

Neste universo de opiniões sem fundamento, é em editorial do Estadão de hoje que encontramos uma dose de sensatez. Segundo o jornal, para tentar aplacar os protestos, a Câmara mudou de entendimento e derrubou a PEC por 430 votos contra 9. A Mesa da Câmara chegou a anunciar que a votação seria adiada para agosto, mas o presidente Henrique Alves (PMDB-RN) voltou atrás, fazendo um apelo pela rejeição, alegando que "o povo brasileiro quer cada vez mais combate à corrupção".

No plano político, a decisão primou pelo oportunismo. No plano técnico, ela terá efeitos desastrosos. Alegando que os promotores e procuradores têm exorbitado de suas competências, os delegados das Polícias Civil e Federal argumentavam que a PEC 37 redefinia as competências das duas categorias, evitando conflitos funcionais. Temendo perder poder e prestígio institucional, os MPs federal e estaduais alegaram que a aprovação da PEC 37 comprometeria a autonomia da instituição, impedindo-a de "combater a impunidade". O lobby dos promotores foi mais forte que o dos delegados e o marketing político prevaleceu sobre a racionalidade jurídica. (...)

Se a Assembléia Constituinte não incluiu a investigação criminal na lista de competências específicas do MP, enunciada pelo artigo 129, é porque não quis dar ao MP uma força institucional que pusesse em risco as garantias processuais dos cidadãos. Afinal, o MP é parte nas ações judiciais. Por isso, não faz sentido que, nos inquéritos criminais, os promotores e procuradores sejam simultaneamente acusadores e condutores da investigação. Isso desequilibra o devido processo legal, na medida em que a outra parte - a defesa - não pode investigar nem promover diligências. Além do mais, a Constituição é clara ao afirmar que cabe às Polícias Civil e Federal exercer a função de polícia judiciária - e, por tabela, presidir inquéritos criminais.


A verdade é que, com a Constituição Cidadã, os procuradores se sentiram sem norte e se atribuíram a missão de tratar de todas as dores do mundo. A rigor, o artigo 129 da “Cidadã’ confere aos procuradores tanto a mediação de brigas de condomínio como de invasões de índios. Recentemente, um destes senhores tomou a defesa das “terras ancestrais” de um punhado de bugres, que acamparam há seis anos em um prédio público no Rio e o denominaram pomposamente de aldeia Maracanã, nome que a imprensa acabou assumindo com gosto.

É fácil – e tentador – seguir atrás de slogans. O slogan é curto e sintetiza toda uma visão de mundo. Ocorre que os fatos, e particularmente os fatos jurídicos, são complexos e não podem ser resumidos em duas ou três palavras. No Brasil também há revoluções - parecem querer dizer os jornalistas. Esta bajulação da multidão pela imprensa está mais parecendo um affonsocelsismo fora de época que, em vez de louvar as riquezas da pátria, louva os desvarios de uma multidão acéfala.

Só porque brasileira.

sábado, junho 29, 2013
 
ESTADO É SELETIVO AO
FINANCIAR PORNOGRAFIA



Nestes dias em que os “jovens” saem às ruas para denunciar a corrupção, em que deputados põem as barbas de molho e até mesmo um deles – condenado em 2010 a 13 anos de prisão – teve sua prisão finalmente pedida às pressas pelo STF para mostrar serviço, faltou um cartaz nas manifestações que denunciasse os preconceitos do Ministério da Cultura em relação à pornografia. Pois o MinC recusou autorizar a captação de recursos via lei Rouanet para a publicação da obra Lasciva conta tudo, de Helena de Almeida Cardoso Brandi, na qual a autora narra suas relações com diferentes homens na rua.

Leio no Estadão que a escritora enviou um projeto para se habilitar a captar recursos por meio da lei de incentivo à cultura para um livro e um blog. Foi recusada duas vezes. Ao ler o texto que justificava a negativa, deparou-se com alegações que considera moralistas, como a de que seja "baladeira". Outra alegação é que ela é estreante - o que não é comum como critério do MinC. Helena denuncia que está sendo vítima de preconceito por parte do Estado brasileiro - mais especificamente, do sistema de incentivo às artes do MinC.

A lei Rouanet é o mais eficaz instrumento oficial de corrupção, uma corrupção legalmente permissível e até mesmo simpática – sempre visa favorecer essa coisa que se chama cultura nacional. Há bem mais década venho denunciando este recurso legal usado por luminares das letras pátrias para pôr a mão no bolso do contribuinte.

Em outubro de 1997 – há 16 anos, portanto – eu já denunciava esta farra obscena com "o meu, o teu, o nosso”, nas Jornadas Literárias de Passo Fundo. Em comunicado intitulado justamente de “A Indústria Textil” (assim mesmo, sem acento, a indústria do texto), dediquei um item aos amigos do Rei. Na época, Rubem Fonseca, Patrícia Mello, João Gilberto Noll e Chico Buarque desembarcaram em Londres, onde fizeram leituras públicas de suas obras e lançaram livros não só na capital britânica, como também na Escócia e no País de Gales.

Em um primeiro momento, poderíamos pensar: que maravilha, o Reino Unido se interessa por nossa literatura. Nada disso. É o Ministério da Cultura brasileiro que promove tais turismos e financia as traduções dos autores brasileiros.

Uma vez amigo do Rei, para sempre amigo do Rei. Em maio do ano passado, comentei a notícia de que Chico Buarque iria receber financiamento da Biblioteca Nacional para a tradução de seu livro Leite Derramado para o coreano. Mais uma ajuda financeira indireta do MinC, comandado pela mana Ana. Chico quer empurrar sua “obra” ao mercado asiático. Quem a paga a tradução da obra do vate na Coréia? Você, leitor, que é coagido a pagar e cinicamente chamado de contribuinte.

As prostitutas literárias – regiamente pagas para dormir com o poder – nem de longe se sentem prostitutas. Pelo contrário, sentem-se embaixadores da tal de cultura nacional, a vaca de mais túrgidas tetas ordenhada por escritores, cineastas, gente de teatro, artes hoje manipuladas pelo Estado no Brasil. Não é pois de espantar que moças que giram bolsinha nas ruas julguem merecer os mesmos subsídios que seus colegas de alto bordo. Volto ao Estadão:

Seguindo a trilha aberta por Bruna Surfistinha, Helena Monteiro resolveu aventurar-se na literatura com uma persona realista, e publica contos eróticos e conteúdo sobre sexualidade. Helena crê que alguns de seus textos escandalizaram o parecerista. Um trecho citado: "Comecei a me relacionar com diferentes homens na rua, para testar a minha reação e o que achava disso. Bati meu recorde: sete caras num mês. Vi que tinha gostado mesmo de poucos. Além do mais, nem cheguei a cobrar de nenhum", ela escreve, em Lasciva Conta Tudo.

Jornalista formada pela UnB e especialista em Relações Públicas pela Universidade de São Paulo, Helena se pergunta quando é que o Estado vai passar a considerar a literatura erótica como parte do escopo da literatura mundial. Tal incompreensão, ela considera, não teria nunca permitido que surgissem obras como a de Anaïs Nin, e Cassandra Rios (das quais ela é fã).


Helena está perplexa e indignada. Sente-se vítima de preconceito e brande em sua defesa escritoras de uma outra época, em que escritores não exigiam ajuda do Estado – isto é, do contribuinte – para publicar pornografia. Cassandra Rios, lésbica assumida, cuja obra era sempre recheada de reticências e gemidos, era dos dias da pornografia literária - anterior à pornografia em policromia dos livrinhos suecos -, que exigia algo da imaginação para ser curtida. Livreiros daqueles dias me contaram que foi campeã de vendas de livros, embora jamais tenha sido citada entre os mais vendidos, por pudor de jornais e revistas.

Anaïs Nin já é farinha de outro saco. Filha de um cubano nascida na França, foi amante de Henry Miller e tornou-se famosa pela publicação de seus diários, que abrangem quarenta anos, começando quando tinha doze. O relacionamento de Miller e Nin foi transposto ao cinema em um filme de 1990, Henry & June, dirigido por Philip Kaufman.

Se a literatura de Cassandra Rios era pornografia barata para uso de adolescentes, os livros de Nin, impregnados de conteúdo erótico foram influenciados pela obra de James Joyce e pela psicanálise. Delta de Vênus (1977) foi traduzido para todas as línguas ocidentais - inclusive para o português - e fez fortuna junto à crítica americana e européia. Dona Helena, além de comparar uma escritora de alto nível à rasteira pornógrafa tupiniquim, quer equiparar sua vida lasciva ao talento da francesa.

Com uma diferença fundamental: tanto Anaïs como Cassandra jamais pensaram em captar financiamento estatal para seus livros. Havia pudor na época: pornografia era assunto particular, jamais questão de Estado. Anaïs nem precisava pensar em dinheiro. Era casada com um banqueiro complacente, Hugh Guiler – que aliás financiava Henry Miller – e só permitiu que seus diários fossem publicados após a morte do marido.

Mas Helena não se engana ao falar em seguir a trilha de Bruna Surfistinha, que teve o relato de suas trepadas financiado pelo MEC. Em 2007, o Ministério da Cultura liberou o filme O doce veneno do escorpião, baseado no livro autobiográfico da profissional – doravante, “ex-garota de programa Bruna Surfistinha” - para captar R$ 3.998.621,65 por meio de mecanismo de renúncia fiscal. A decisão foi publicada no Diário Oficial do dia 16 de julho daquele ano.

Não bastasse o financiamento da transposição ao cinema desta obra seminal das letras nacionais, mais tarde a autora foi beneficiada com mais 2 milhões de reais para a produção da peça Doce Veneno, dirigida pelo crítico de cinema Rubens Ewald Filho.

Se o MinC autorizou a captação de dinheiro público para a narração da vida sexual da Bruna Surfistinha, por que não autoriza captação para a divulgação urbi et orbi das trepadas da Heleninha? Puta por puta, por que Bruna e não Helena? Por que prostitutas das Letras e não as da rua?

Preconceito, puro preconceito.

sexta-feira, junho 28, 2013
 
DORMINDO COM O INIMIGO


Hoje vou lutar pelo inimigo. Passei na Livraria da Vila, no shopping Higienópolis, e fui ver o que havia de novo em matéria de literatura religiosa. A estante é paupérrima em bons títulos. Sob a rubrica Religiões, estão dispostos livros catequéticos e de auto-ajuda, algo sobre judaísmo, islã e espiristismo e o resto é silêncio. Vez que outra, encontro um estudo sério, como os livros de Bart Erhman. Com sorte e paciência, sempre se cata algo legível.

Hoje, encontrei uma edição no mínimo curiosa, Cristianismo, organizada por Ann Marie b. Bahr, impressa na China, em português, e publicada em Postdam, Alemanha, 2011. Capa dura, iconografia belíssima, dimensões 32,5 x 24,5cm, 448 páginas. Atenção: 3,3 quilos.

Trata-se de uma muito bem elaborada história do Cristianismo, que analisa a religião, desde seu surgimento, a Bíblia, a oração, os ritos religiosos, entre outros tópicos. No cardápio: Os primeiros cristão e as primeira igrejas; O Cristianismo durante o Império Romano; O Sacro Império Romano; As cruzadas; As mulheres cristãs ao longo dos séculos; A Reforma; Espanha, Portugal, e a Inquisição; A Igreja anglicana; A Contra-Reforma; Ciência e Religião; Os cristãos indígenas; Do evangelismo ao tele-evangelismo; entre outros.

Não é livro para ler de cabo a rabo. É mais um dicionário, onde podemos nos informar sobre concílios, dogmas, expansão da nova religião, Reforma e Contra-reforma, outros cristianismos. Em uma primeira trecheada, a exposição pareceu-me honesta. De qualquer forma, o volume traz os dados básicos sobre o cristianismo. Recomendo. Particularmente pela farta iconografia. Quem gosta de arte sacra vai delirar. É obra que enobrece uma biblioteca.

É daqueles livros que não se pode deixar de comprar quando o vemos numa livraria, pois logo sai do mercado e depois só em bibliotecas. Preço amistosíssimo, coisa de livro editado na China,199 reais. No Brasil, não sairia por menos de 500 reais. Consegui 15 % de desconto e tinha um bônus de 30 na livraria. Paguei 140.

De lambuja, resolvi dar-me mais um presentinho, O Livro dos Santos, assinado por Rogério de Campos, uma coletânea de santos propósitos destes heróis da Santa Madre. Vale a pena. Segue uma mostragem, o curioso itinerário de Santo Onofre, bela demais para ser feliz.

Santo Onofre, antes de ser santo, era uma moça muito bonita no Egito do século IV. Alguns dizem que era muito virtuosa, enquanto outros afirmam que, ao contrário, era bem dissoluta. Seja como for, todos concordam que era uma mulher muito bonita, que um dia cansou-se do assédio masculino e pediu a Deus que a livrasse daquela incômoda beleza.

Deus atendeu aos pedidos de Santo Onofre e fez com que ficasse feia e barbada. Santo Onofre tornou-se então uma eremita. Andava nua, coberta apenas pelos longos cabelos e pela longa barba. Diversos retratos antigos a mostram usando uma pioneira minissaia baloné feita de folhas. Mas na Yilanli Kilise (igreja da serpente), na Capadócia, Santo Onofre aparece nua.

Não podemos ver seu sexo por causa de uma grande folha rosada de palmeira, mas podemos ver suas mãos delicadas e seus seios arredondados. Santo Onofre viria do egípcio uen-nefer, “aquele que está sempre feliz e satisfeito”.


Vivendo e aprendendo. Santo Onofre, quem diria? O cristianismo guarda mistérios surpreendentes. O livro promete. Certamente voltarei ao assunto.

quinta-feira, junho 27, 2013
 
QUANDO SER NAZISTA
É SER DE ESQUERDA



Triste sina a da direita no Brasil – escrevia eu há oito anos. Em países mais civilizados, ser de direita é apenas não concordar com as propostas da esquerda, direito legítimo de todo cidadão. No Brasil, direita significa portar toda a infâmia do mundo. Que o diga Clóvis Rossi. Em crônica de 2005, afirmou: “É um caso de estudo para a ciência política universal. Já escrevi neste espaço uma e outra vez que o PT fez a mais radical e rápida guinada para a direita de que se tem notícia na história partidária do planeta”.

Isto é: se o PT se revela corrupto, ele não é mais esquerda. É direita, porque só a direita é corrupta. Mesmo que o PT seja hoje o mesmo desde que nasceu, mesmo que os grandes implicados na corrupção – Genoíno, Mercadante, Zé Dirceu, Lula – sejam seus pais fundadores. Segundo Rossi, o PT guinou para a direita. E por que guinou para a direita? Porque suas falcatruas foram trazidas à tona. Permanecessem submersas, o partido continuaria sendo de esquerda.

Há uma boa década venho falando naquilo que os franceses chamam de glissement idéologique. O conceito de esquerda sempre muda, à medida em que se corrompe. A direita é o repositório de todos os males do mundo, inclusive os das esquerdas. Pois quando as esquerdas cometem crimes – ou “erros”, como preferem seus líderes – é que não eram de esquerda, mas de direita.

Jornalista pode ser corrupto, canalha e até mesmo medíocre. Mas sempre tem espírito de síntese, ou não é jornalista. Tomei conhecimento há pouco de um vídeo antigo, de 2008, onde Mino Carta, este impoluto porta-voz oficioso do PT, revela notável espírito de síntese. Ser de esquerda, para Mino, é defender a liberdade e igualdade. Mas se o regime vira ditadura, mesmo tendo partido das melhores intenções, o regime é de extrema-direita.

Trocando em miúdos: ditadura de esquerda não existe. É o que o jornalista quis dizer mas não ousou dizer. Talvez porque tal afirmação soe um tanto pornográfica nos dias que passam. Temos então que tanto Stalin como Fidel Castro eram de direita. Segundo Clóvis Rossi, o PT também. E as esquerdas permanecem intactas no sétimo céu das intenções sublimes.

Já o inverso é permissível. Você pode ter sido de direita a vida toda. Mas se se converte ao socialismo, vira esquerda desde criancinha. Que o diga Luís Fernando Verissimo. Em sua crônica no Estadão de hoje, comenta uma entrevista de Daniel Cohn-Bendit para o último Journal du Dimanche, sobre o que acontece no Brasil, na Turquia e o que aconteceu nas recentes "primaveras" árabes e em 68 em Paris: “Forçando um pouco a cronologia, Cohn-Bendit diz que 68 foi o preâmbulo de 81, quando a esquerda chegou ao poder na França”. E bota forçar a cronologia nisso, pois o presidente logo após 68 foi Georges Pompidou.

Refere-se a François Mitterrand, político arrivista condecorado pelo nazismo que, após ter optado pelo socialismo, virou esquerdista desde o berço. Hoje, o episódio é pouco conhecido até mesmo pelos franceses, e já perdi alguns amigos por tê-lo relembrado. Relembro então de novo.

Retornemos 33 anos atrás. Eu voltava da Inglaterra com uma amiga. Seriam seis da tarde. Em Paris, mal cheguei em casa, liguei a televisão. Na tela, aos poucos foi surgindo uma imagem. Começou pela testa e foi descendo, em fatias. Antes que tivesse chegado aos cílios, percebi que não era a careca de Giscard d’Estaing. O vencedor das eleições na França, naquele 10 de maio, era Mitterrand. Mesmo a imprensa internacional foi surpreendida. Havia apostado na vitória de Giscard. Só quando caminhões de champanhe começaram a abandonar o QG de Giscard, os jornalistas perceberam que a notícia estava ailleurs.

Minha amiga, gaúcha em trânsito pela Europa, apavorou-se. Confundida pela associação que a imprensa brasileira fazia entre o socialismo francês e o socialismo soviético, queria pegar passaporte e voltar ao Brasil antes que o novo governo fechasse as fronteiras. Verdade que nem só ela se confundiu. Empresários franceses empacotaram seus dinheiros e tentaram sair do país através de discretas fronteiras suíças. Medo bobo. Como bom francês, Mitterrand não iria sacrificar o bem-estar de seus conterrâneos em nome de um ideal besta. Socialismo mesmo - le vrai - a França só recomenda para o Terceiro Mundo.

A eleição de Mitterrand é um desses mistérios que confunde qualquer analista político. Ninguém desconhecia sua participação no governo pró-nazista de Vichy, do qual recebeu, na primavera de 43, a Francisque, a mais alta condecoração conferida pelo marechal Pétain. Tampouco era desconhecida sua participação decisiva, como ministro do Interior, na guerra da Argélia e nas torturas praticadas pelo Exército francês. Defensor de uma Argélia francesa, Miterrand reprimiu com ferocidade os movimentos insurrecionais. Em setembro de 53, declarou: "Para mim, a manutenção da presença francesa na África do Norte, de Bizerte a Casablanca, é o primeiro imperativo de toda política". Em 54, afirmou na tribuna da Assembléia Nacional: "A rebelião argelina não pode encontrar senão uma forma terminal: a guerra".

Um golpe de imprensa empanava sua trajetória, o falso atentado nas cercanias do Luxembourg. Na noite de 15 de outubro de 59, ao sair da brasserie Lipp, Mitterrand, então senador pela Nièvre, sentiu-se perseguido por um carro. Ele faz um desvio pela avenue de l’Observatoire, pára sua 403, pula uma cerca viva e se joga de bruços na grama. Uma rajada de metralhadora é disparada sobre seu carro. No dia seguinte, o fato está na primeira página de todos os jornais, do Le Monde ao Humanité, o jornal oficial do PC francês.

Aos 43 anos, o político ambicioso vira herói. A glória é efêmera. Três dias depois, o jornal Rivarol, entrevista um dos agressores de Mitterrand, que afirma ter sido o próprio Mitterrand que encomendara o atentado, para fazer subir sua cota de popularidade. O desmonte da farsa caiu no vazio. Processado por ultraje à magistratura, após a cassação de sua imunidade parlamentar, Mitterrand será beneficiado por um non-lieu, como também seus "agressores".

Ex-colaborador de um governo pró-nazista, condecorado por este mesmo governo, mentor da guerra na Argélia e responsável pela tortura de milhares de argelinos, anticomunista ferrenho numa França que sempre nutriu simpatias pelo regime soviético, farsante vulgar capaz de forjar um atentado para ganhar votos, nada disto impediu Mitterrand de derrotar Giscard em 81, com 52,22% dos votos expressos, e de eleger-se por mais um setenato em 88.

Empunhando a bandeira do socialismo, Mitterrand, político de extração nazista e queridinho de Pétain, enganou não só os franceses como o mundo todo. Na época, também se falou em mudanças. Mudou algo na França de 1981 para cá? Estruturalmente, nada. Mudaram apenas fatores que nada têm a ver com orientação política, mas dependem da economia e imigração, como maior desemprego e avanço do islamismo. Se algo novo ocorreu na França de lá para cá foi sua adesão ao euro, mas isso nada tem a ver com socialismo ou Mitterrand.

Para Verissimo, quando opta pelo socialismo, até nazista é de esquerda.

quarta-feira, junho 26, 2013
 
PERFEITA IDIOTA QUER
PLEBISCITO SOBRE
ARABESCOS COLATERAIS



Nossa perfeita idiota revelou-se tardiamente, escrevia eu em crônica recente. O brilhante achado de dona Dilma – a convocação de uma Constituinte - não durou sequer o que duram as rosas. Inviável do ponto de vista jurídico, no dia seguinte foi unanimemente rechaçado por ministros e juristas. Em menos de 24 horas, o governo tatibitate do PT deu marcha a ré.

Nunca um presidente da república foi desmoralizado em tão curto espaço de tempo. Tentando remendar o soneto, o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, veio a público dizer que dona Dilma não disse o que disse:

"A presidente da República, ontem na sua manifestação, falou em processo constituinte específico. Ela não defendeu uma tese. Há várias maneiras de se fazer um processo constituinte específico. Uma delas seria uma Assembleia Constituinte específica como muitos defendem. A outra forma seria, através de um plebiscito, colocar questões que balizassem o processo constituinte específico feito pelo Congresso nacional. Há várias teses. A presidente falou genericamente sobre isso".

Desautorizada em seu reflexo de perfeita idiota, dona Dilma não abre mão pelo menos da idéia de plebiscito. Mas atenção: plebiscito sobre reformas políticas, questiúnculas de representação, jamais sobre o que realmente importa.

Há três ou quatro temas candentes, que há horas pedem plebiscito, que acaba sendo barrado por quem teme o resultado da vontade da maioria. Para começar, a descriminalização do aborto, que na verdade há muito deixou de ser crime.

Em janeiro de 2009, Veja lembrava um dado que na época já não era novo: os especialistas estimavam que cheguasse a um milhão o número de abortos no Brasil. O cenário teria sido bem pior na década de 80, quando os abortos clandestinos podem ter chegado a 4 milhões por ano. A redução desse número se deveria ao aperfeiçoamento dos métodos anticoncepcionais e à disseminação no país de políticas de planejamento familiar, logo estas duas medidas às quais à Igreja se opõe ferozmente.

Ora, quando se cometem um milhão de um mesmo crime ao ano – ou quatro milhões – há muito o crime deixou de ser crime. Aborto entrou na categoria dos usos e costumes. Neste país onde 250 mil criminosos, já condenados, vivem livres como passarinho, porque não há mais vagas nas prisões, onde colocar um milhão – ou quatro milhões – de mulheres, mais os milhares de profissionais que as assistiram durante o aborto? Se aborto ainda é considerado crime pela legislação, é crime de condenação impossível. E sem sanção não há crime.

Mas continua sendo crime na letra da lei. Em abril passado, a procuradora da mulher no Senado Federal, Vanessa Grazziotin, defendia um plebiscito para que a população decidisse sobre a flexibilização do aborto no país.

- O tema é tão polêmico – dizia a procuradora - que nunca o Congresso Nacional conseguiu avançar. Porque há uma parte importante da população, inclusive médicos, cientistas, movimento de mulheres, que tem essa mesma opinião, ou seja, de autonomia da mulher sobre seu próprio corpo. Mas há uma outra parte, uma parcela importante também da sociedade, que não permite de maneira nenhuma. De tal sorte que eu entendo que esse é um caso típico que nós deveríamos decidir através de um plebiscito, chamar o povo a votar.

Essa outra parte é a Igreja Católica e demais confissões cristãs. Mas a Igreja não tem muita base histórica para defender a idéia – bastante recente do ponto de vista histórico – de que a tal de alma já está presente no embrião. Há vários anos venho lembrando que dois campeões da Igreja, são Tomás e santo Agostinho, eram favoráveis ao aborto. Segundo o aquinata, só haveria aborto pecaminoso quando o feto tivesse alma humana o que só aconteceria depois de o feto ter uma forma humana reconhecível. Para o Doutor Angélico, como o chamam os católicos, a chegada da alma ao corpo só ocorre no 40º dia de gravidez. A posição de Aquino sobre o assunto foi aceita pela igreja no Concílio de Viena, em 1312.

Nunca é demais lembrar que foi apenas em pleno século XIX, em 1869 mais precisamente, que o Papa Pio IX declarou que o aborto constitui um pecado em qualquer situação e em qualquer momento que se realize. Se os católicos se pretendem contra o aborto, deveriam começar destituindo seus santos da condição de sapiência e santidade. Ou seja, faz apenas 140 anos que a Igreja decidiu que uma mulher não mais é dona de seu próprio corpo.

Outra questão a pedir plebiscito era o casamento homossexual, ao qual se opõe a maioria da população, mas foi empurrado goela abaixo pelo STF, cujos ministros não hesitaram em rasgar a Constituição para passar por avançadinhos. Na verdade, este plebiscito foi pedido pelo pastor Marco Feliciano. Exato, aquele mesmo da cura gay. A proposta foi apresentada em 2011. Em dezembro de 2012 o projeto começou a ser analisado pelos membros da CDHM, mas não foi votado por um pedido de vista feito pelo deputado Ronaldo Fonseca (PR-DF), que alegou precisar de mais tempo para analisar o teor da proposta. E mais não se falou no assunto.

Mas a questão candente mesmo, regida por uma legislação que só faz aumentar a criminalidade no país, é a maioridade penal, hoje fixada em 18 anos. Qualquer marmanjo de 16 ou 17 anos, até mesmo faltando um dia para completar 18, pode matar e estuprar à vontade e só é punido com dois ou três aninhos de Casa. Mesmo que tenha matado meia dúzia de pessoas, sai de ficha limpa e sem folha corrida.

Esta é a discussão que hoje mais preocupa o país. O assunto voltou à pauta em abril passado, quando a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) da Câmara rejeitou a inclusão na pauta do Projeto de Decreto Legislativo 1002/03, do ex-deputado Robson Tuma, que convocava um plebiscito para consultar a população sobre a redução ou não da maioridade penal. A intenção é reduzir para 16 anos a maioridade penal. Se aos 16 anos um jovem pode eleger o presidente da República, pode muito bem responder penalmente por seus atos. Quatro partidos (PT, PCdoB, PSDB e PSB) se uniram para obstruir a votação.

Sobre estas questões cruciais, que dividem o país em dois, sempre há quem barre um plebiscito. O desejado por dona Dilma é sobre arabescos colaterais, sobre como eleger quem vai decidir o que é ou não legal.

Nada que vá ao cerne da questão. Discutir maioridade penal, aborto, casamento homossexual, nem pensar. Há sempre o risco de os plebiscitados votarem com sensatez.

terça-feira, junho 25, 2013
 
DONA ZICA CRIA REDE DE
DESENCARAPINHAMENTO



Leio no Estadão que a ex-faxineira Heloisa Helena de Assis, hoje dona de uma rede de beleza com 1,7 mil funcionários, foi escolhida empreendedora do ano na 2ª edição do Prêmio Estadão PME, ocorrida ontem em São Paulo.

Conhecida como Zica Assis, a empresária é protagonista de uma história impressionante de sucesso. Sem nunca ter estudo sobre o assunto, ela desenvolveu um produto para diminuir o volume dos cabelos crespos, até hoje o carro-chefe de sua rede de estética com 13 unidades, o Instituto Beleza Natural. O negócio emprega 1,7 mil funcionários e tem previsão de abrir mais cinco lojas, três delas em São Paulo ainda em 2013.

Com 21 anos, a empresária resolveu pesquisar o próprio cabelo para entender porque ele era tão volumoso. Foi fazer um curso de cabeleireira na comunidade do Catrambi, zona norte do Rio de Janeiro. "Eu me encontrei como cabeleireira, mas não encontrei o resultado que queria pro meu cabelo. Mesmo assim não desisti e fui em busca do meu sonho", disse.

Como no curso sempre aparecia alguém para oferecer produtos para alisamento, Zica conseguiu matérias-primas para desenvolver seu produto em casa, na bacia e com colher de pau. "Consegui desenvolver uma formulação que deu jeito no meu cabelo. A fórmula é segredo de estado", destacou.

Mutatis mutandis, a ex-faxineira criou os institutos de desencarapinhamento, já anunciados por Monteiro Lobato, em O Presidente Negro, obra de 1926. O taubateano, que no início do século passado antecipou a idéia da Internet, parece também ter previsto o empreendedorismo de dona Zica.

Estamos no ano da graça de 2.228. Para Miss Jane, personagem americana de Lobato, urge desembaraçar-se dos negros da América. A solução branca é simples: exportar, despejar os cem milhões de negros americanos no Vale do Amazonas. O que não era fácil “não só em virtude de tremendas dificuldades materiais como por ferir de face a Constituição Americana”. Para Miss Jane, os negros queriam a divisão do país em dois, o sul para os negros e o norte para os brancos, já que a América surgira do esforço conjunto de ambas as raças.

Se não era possível gozar juntas da obra feita em comum, o razoável seria dividir o território em dois pedaços. Os brancos nada queriam ceder de seu status quo e o problema tornava-se ameaçador. O ano é de eleições e surge um candidato capaz de unir o eleitorado negro: Jim Roy, de tez levemente acobreada, parecendo um mestiço de senegalês e pele -vermelha. A cor de sua pele em nada lembrava os negros de hoje (isto é, 1926).

Na época, a ciência havia resolvido o caso de cor pela destruição do pigmento. Jim Roy, negro de raça puríssima e cabelo carapinha, era “horrivelmente esbranquiçado”. No entanto, nem os recursos da ciência faziam os negros deixarem de ser negros na América. Os brancos não lhes perdoavam aquela camuflagem da despigmentação. Jim Roy, líder do partido Associação Negra, não chega a ser uma ameaça para o poder. Representa cem milhões de negros, contra 200 milhões de brancos. Ocorre que entre os brancos surge uma séria dissidência, um partido de mulheres. Os velhos partidos Democrático e Republicano haviam-se fundido num forte bloco sob a denominação de Partido Masculino, liderado por Kerlog, presidente em exercício e candidato à reeleição.

Este bloco não tinha certeza da vitória, pois o partido contrário, o Feminino, dispunha de maior número de vozes, lideradas por miss Evelyn Astor. As estatísticas davam ao Partido Masculino 51 milhões de votos; ao Feminino 51,5 milhões e à Associação Negra, 54 milhões. A eleição dependia pois da atitude de Jim Roy.

Aproximam-se as eleições. Que, em 2.228, ocorrem em poucos minutos, em função de avanços tecnológicos previstos por Lobato, que anunciam, em 1926, nosso mundo informatizado de hoje, 2013.

A possibilidade de “radio-transportar” os dados - antecipada por Lobato - opera uma reviravolta nas eleições. Jim Roy vai explorar com habilidade este dado novo, a velocidade. As eleições haviam sido marcadas para as 11h da manhã e durariam apenas 30 minutos. O candidato da Associação Negra avisa os agentes distritais que só às 10h anunciará o nome em que os negros devem votar. Ao anunciá-lo, a desconfortável surpresa: Jim Roy se anuncia como candidato.

Para pasmo de todos, depois de 87 presidentes brancos, surgia o primeiro presidente negro, eleito por 54 milhões de irmãos de sangue. Os partidos Masculino e Feminino haviam mais ou menos empatado, com algo em torno de 50 milhões e meio de votos. Passada a perplexidade, negros e brancos caem na realidade do dia seguinte. Para Kerlog, 87º presidente dos Estados Unidos e candidato derrotado, surge uma dor de cabeça histórica: ele vê na vitória negra a América transformada num vulcão e ameaçada de morte. Considera que se não forem mantidas presas as rédeas dos dois monstros – a ebriedade negra e o orgulho branco –, a chacina será espantosa. Seis líderes brancos reúnem-se em convenção e discutem uma solução para o impasse. A solução, mantida em sigilo, é aceita por unanimidade.

Na época, John Dudley, inventor e um dos membros da convenção, descobrira os raios Omega, que tinham a propriedade miraculosa de modificar o cabelo africano. Com o tratamento, o mais rebelde pixaim se tornava não só liso, mas também fino e sedoso como o cabelo do mais apurado tipo de branco. Os raios Omega influíam no folículo e eliminavam o encarapinhamento, último estigma da raça negra, que já havia resolvido o problema da pigmentação.

Ainda não recuperados das emoções da vitória, cem milhões de criaturas agradeciam aos céus a nova descoberta, que redundaria em um aperfeiçoamento físico da raça. O pigmento fora destruído mas o esbranquiçamento da pele não revelava cor agradável à vista. Com os raios Omega, tinham esperança de obter com o tempo a perfeita equiparação cutânea. Em todos os bairros de todas as cidades, a Dudley Uncurling Company estabeleceu Postos Desencarapinhantes, que se multiplicaram ao infinito, como se uma força oculta empurrasse a empresa do inventor dos raios Ômega ao desencarapinhamento da América Negra no menor espaço de tempo possível.

Era dos mais simples o processo. Três aplicações apenas, de três minutos cada uma, ao custo de dez centavos por cabeça, faziam com que os negros acorressem aos postos como cães famintos. Os brancos, inicialmente irritados com o que chamavam de “a segunda camuflagem do negro”, acabaram se divertindo com o espetáculo da súbita transformação capilar de cem milhões de criaturas.

Na véspera do dia da posse, Jim Roy, em sua residência particular, sonhava o maior sonho já sonhado no continente, quando seu criado lhe anuncia a visita de “um homem branco natural”. Era o presidente Kerlog, o adversário derrotado. Que anuncia ao líder negro não existir moral entre raças, como não há moral entre povos. Há vitória ou derrota.

– Tua raça morreu, Jim...

Os raios Omega de John Dudley tinham uma dupla virtude: ao mesmo tempo que alisam os cabelos, esterilizavam o homem. No dia em que seria empossado o 88º presidente dos Estados Unidos, o primeiro presidente negro da América, Jim Roy aparece morto em seu gabinete de trabalho. Os negros pensaram imediatamente em crime e chegou a haver um movimento de revolta. Mas o fatalismo ancestral superou o ódio e o imenso corpo sem cabeça recuou instintivamente e repôs-se no humilde lugar de onde a vitória de Roy o tirara. Procederam-se novas eleições e Kerlog foi reeleito por 100 milhões de votos.

A vida da América voltou à normalidade. Estrangulada a circulação da seiva, a raça extinguiu-se num crepúsculo indolor. Nem exportação para a Amazônia, nem divisão do país, nem esbranquiçamento com a eliminação do pigmento e da carapinha. Mas extinção pura e simples de uma raça para o pleno desabrochar da Super-Civilização Ariana...

No Brasil, já desponta o canditato negro. Sem carapinha nem desencarapinhamento. Nem auto-extinção. Dona Zica talvez não tenha lido Lobato. Mas entendeu os anseios da raça.

segunda-feira, junho 24, 2013
 
NOSSA PERFEITA IDIOTA TARDIA


Há quem veja virtudes no pronunciamento muito sem graça de dona Dilma, em resposta às “jornadas de junho”, como já foram chamadas por intelectuais que adoram aliterações os protestos deste mês. Ora, para começar, a presidente embutiu uma grossa mentira em sua fala:

“Em relação à Copa, quero esclarecer que o dinheiro do governo federal, gasto com as arenas é fruto de financiamento que será devidamente pago pelas empresas e os governos que estão explorando estes estádios. Jamais permitiria que esses recursos saíssem do orçamento público federal, prejudicando setores prioritários como a Saúde e a Educação”. Conversa para meninos de passeata dormirem. Ora, de acordo com o Ministério do Esporte, o custo da Copa do Mundo subiu de 25,5 bilhões de reais em abril para 28 bilhões de reais atualmente. O valor total previsto de gasto é de 33 bilhões de reais até 2014. O desmentido vem de casa.

Não bastasse mentir – o que a bem da verdade já não fica mais feio em um presidente da República – dona Dilma, isto é, seu ghostwriter, aproveitou o azo para acenar com a importação dos famosos médicos cubanos, tão rejeitada pela classe médica brasileira e tão almejada pelo PT: “trazer de imediato milhares de médicos do exterior para ampliar o atendimento do Sistema Único de Saúde, o SUS”.

Não bastasse prever uma maõzinha aos camaradas cubanos, vítimas da indigência do socialismo castrista, em seu pronunciamento na TV disse ser a favor da transparência em seu governo, ao mesmo tempo em que proibia a divulgação dos gastos milionários das suas viagens ao exterior. Verdade que recuou deste propósito, com o gesto envergonhado de criança que suja as calças. Agora só serão secretos os gastos com segurança. Que servirão, obviamente, para esconder gastos com mordomias outras.

Pelo menos já não manifestava seu orgulho inicial – e demagógico - pelos jovens que depredavam cidades. Mas ainda via um saldo positivo nas depredações: "Se aproveitarmos bem o impulso desta nova energia política, poderemos fazer, melhor e mais rápido, muita coisa que o Brasil ainda não conseguiu realizar por causa de limitações políticas e econômicas".

Veja já via uma “revolução verdadeira” no repúdio ao PT durante as manifestações. “Em 1992, em gesto de desespero, o então presidente Fernando Collor convocou os brasileiros a sair às ruas de verde e amarelo. O povo saiu de preto e ele saiu do palácio do Planalto. (...) Lula mandou os sindicalistas se fingirem de povo e o resultado foi o mesmo. Cascudos nos intrusos e bandeiras queimadas e rasgadas. Os esquerdistas tiveram de ouvir um dos mais elegantes xingamentos da história mundial das manifestações: “Oportunistas, oportunistas”.

Ora, o máximo que parece ter ocorrido é uma queda nas preferências por dona Dilma nas próximas eleições, que eram consideradas favas contadas pela presidente e mesmo pela imprensa. Cá entre nós, se o PT não conseguir emplacar a Presidência ano que vem, não se trata de revolução, mas de simples alternância de poder. Se é que algo muda neste país, quando oposição assume governo.

Temerosa da reação das urnas, e ciente de que seu pronunciamento não só caiu no vazio mas foi também contraproducente, a presidente volta à carga. E propõe, entre outras medidas, uma medida radical, um pacto pela construção de uma ampla e profunda reforma política, que amplie a participação popular.

Dona Dilma disse que vai propor um plebiscito para decidir pela convocação de uma Constituinte exclusiva para tratar da reforma política no país. Reforma política é a palavrinha mágica de todo demagogo, o “abre-te Sésamo” para a reeleição. Nada de novo sob o sol. No Manual do Perfeito Idiota Latino-americano, publicado há 13 anos, seus autores já prevêem este recurso usual dos perfeitos idiotas latino-americanos:

“Aos cinquenta anos, depois de ter sido senador e talvez ministro, nosso perfeito idiota começará a pensar em suas opções como candidato presidencial. O economista poderia ser um magnífico ministro de Fazenda seu. Tem a seu lado, além disso, nobres constitucionalistas de seu mesmo signo, professores, tratadistas ilustres, perfeitamente convencidos de que para resolver os problemas do país (insegurança, pobreza, casso administrativo, violência ou narcotráfico) o que se necessita é uma profunda reforma constitucional. Ou uma nova Constituição que consagre por fim novos e nobres direitos: o direito à vida, à educação gratuita e obrigatória, à intimidade, à inocência, à velhice tranqüila, à felicidade eterna. Quatrocentos ou quinhentos artigos com um novo ordenamento jurídico e territorial, e o país ficará como novo. Nosso perfeito idiota é também um sonhador”.

Nossa perfeita idiota está se revelando tardiamente.

domingo, junho 23, 2013
 
Entrevista:
POVO É CONIVENTE
COM A CORRUPÇÃO



Por Ernani Fernandes

- Janer, como você define “corrupção”?
- Corrupção é roubo de dinheiro público.

- O que você pensa do uso das redes sociais em campanhas contra a corrupção?
- Não simpatizo nada com esses protestos em redes sociais e muitos blogs contra a corrupção. De modo geral, é coisa de militante de sofá. Corrupção não é coisa que possa ser combatida – nem mesmo denunciada – por cândidas almas indignadas. Para se desvendar um esquema corrupto, é preciso promotoria pública, polícia, boa equipe de repórteres. Que tem a dizer sobre o Maluf um pobre diabo indignado, se nem a máquina da Justiça consegue colocá-lo atrás das grades? A maior parte dos protestos contra a corrupção que se vê por aí é coisa de bobalhões que se pretendem heróis.

- Crê que não há valor nas marchas contra a corrupção, no “Fora, Renan!”, nas manifestações e passeatas contra a PEC 37, a PEC 33, pela caracterização da corrupção como crime hediondo, entre outros?
- Adiantaram de algo essas marchas?

- Sendo dispensável o uso das redes sociais, qual é o melhor meio para divulgação das manifestações populares?
- Que sejam divulgadas pelas redes sociais. Mas de nada adianta. Os militantes de sofá se acham muito solidários com os injustiçados do mundo. É muito confortável denunciar a injustiça sentado em casa.

- Ainda que se demande capacidade técnica para a investigação e a descoberta de tais delitos, não há valor na mobilização de cidadãos comuns como forma de apoio a entidades, como o Ministério Público, bem como para a cobrança de atitudes pelas autoridades, tornando o problema público e eludindo possíveis “engavetamentos”? Isto é, não podem tais atuações implicarem um ação conjunta, não necessariamente excludente? Desse modo, ainda que o cidadão pouco instruído não possa “desvendar” tais delitos, não pode ele contribuir incentivando, por diversos meios, tais ações?
- Você acha que algum corrupto se preocupa com tais reações? Se eles não se preocupam nem com ações judiciais, pouco ou nada se preocuparão com recadinhos públicos de anônimos cidadãos.

- O fato de a Justiça não “conseguir” colocar Maluf atrás das grades não pode ser atribuída à falta de motivação política, ou ainda a conluios que aderiram ao aparato estatal? Não poderia isso ser revertido por uma maior pressão e mobilização da sociedade civil?
- Nada disso. Se deve aos bons advogados que Maluf pode pagar e às brechas que a lei deixa para salvar os amigos do Rei.

- Como fazer com que cidadãos que se manifestam apenas nas redes sociais passem a comparecer às marchas e manifestações marcadas nas mesmas ou colaborem em estruturas de controle e conscientização?
- Sei lá. Só sei que marchas de nada adiantam. Podem até dar aparência de legitimidade a certas reivindicações, mas não mais do que isso.

- Que tipo de modelo estatal tende a acentuar os índices de corrupção?
- Não tenho a mínima idéia. Mas quanto maior é o orçamento, maior é a corrupção.

- Qual a diferença entre corrupção pública e privada? Qual causa mais danos à sociedade? Como evitá-las?
- Não existe corrupção privada. Se o dono do bar me pede 50 reais por uma cerveja e eu pago, sou um panaca mas pago com meu dinheiro. Corrupção só existe quando existe dinheiro público em jogo. Para ser corrupto, algum acesso se precisa ter ao poder. Este acesso o pobre não tem. Ser corrupto não é para qualquer um. É para quem pode. E mais: exige trabalho. Por mais dura que seja sua jornada, certamente Carlinhos Cachoeira, Zé Dirceu, Maluf, Delúbio, Marcos Valério suaram mais a camiseta do que você. Não se constrói uma quadrilha eficiente sem esforço e dedicação. São centenas de milhares de horas-homem de trabalho. O mensalão, por exemplo, começou a ser montado em 1980, no colégio Sion, em São Paulo. Foram mais de vinte anos de trabalho só para a consolidação da quadrilha. Ser honesto pode não compensar muito. Mas sem dúvida é menos trabalhoso.

- Como você caracteriza a apropriação indébita, a cobrança irregular por funcionários, os furtos de estoque, adulterações e trocas de estoque, bem como o superfaturamento nas compras realizadas por empresas?
– Como os códigos as caracterizam. Como crimes.

- A corrupção ocorrente no Brasil é mais agravada que em outros países? Por quê?
- Não sei. Só organismos internacionais especializados podem saber disso. Fala-se muito na Índia e na Rússia como campeões neste esporte.

- Há soluções para a corrupção? Quais foram aplicadas com sucesso por outros países?

- Vigilância bancária e fiscal. Transparência de gastos do governo. A Receita Federal tem dado provas de muita eficiência. Mas muitas vezes barra na malha fina o contribuinte que esqueceu de declarar umas merrecas e deixa passar os Malufs e Cacciolas da vida.

- Como tais falhas podem ser sanadas?
- Corrigindo leis tortas, eliminando suas brechas e não admitindo a idéia de que certos criminosos estão acima de toda e qualquer lei.

- Como a cultura brasileira interfere para a prática da corrupção? Há uma interferência relevante?
- O brasileiro não é lá muito avesso à corrupção. Importa-se mais com o sucesso. Se o corrupto é bem sucedido, louvado seja. Prova disto é o Lula. Este é o supremo critério de uma certa elite abastada e inculta: o tal de sucesso. Vale tanto para Lula como Maluf, Sarney ou Collor. Seja Hebe Camargo ou Sílvio Santos. Paulo Coelho ou Chico Buarque. Vale também para o povão. Pouco importa nesta São Paulo que gerou tanto Lula como Maluf, que o líder petista se abrace com o criminoso procurado internacionalmente pela Interpol. Maluf só está livre porque está no Brasil. Se der um passo no estrangeiro, pode ser preso. Lula se abraça com o mafioso, em seu jardim, e consegue eleger seu candidato em São Paulo. A cúpula do PT foi condenada pelo mensalão e os criminosos portam uma aura de mártires.

- Isso pode ser mudado? Em caso positivo, como?
- Não acredito que possa ser mudado. De um país que elege e reelege corruptos notórios, nada se pode esperar nesse sentido.

- Como a corrupção pode deteriorar o Estado e a vida pública?
- Deteriora no sentido em que empobrece o Estado em favor dos vivaldinos.

- Como a privatização pode auxiliar no combate à corrupção? Ela pode auxiliar a corrupção?
- O Estado tem bolso grande e ninguém cuida. A empresa privada tem de zelar por seu dinheiro. A menos que seja cúmplice do Estado, como sói acontecer no Brasil. Como entender que Eike Batista, que surgiu do nada e virou milionário da noite para o dia, não esteja na cadeia. É óbvio que sua súbita fortuna foi decorrência de informação privilegiada. Como os novos milionários russos, que saltaram como cogumelos após a chuva, logo depois da desintegração da União Soviética.

- A corrupção no governo atual é maior que em tempos passados? Por quê?
- Maior e mais deslavada. Nos governos militares, não temos notícia de que os governantes comprassem leis. No governo petista, se comprou deputados aos magotes, e as leis compradas vigem até hoje. O STF, que hoje pune os mensaleiros, é o mesmo STF que um dia julgou constitucionais as leis compradas. O ministro Joaquim Barbosa, o novel Catão tupiniquim, que hoje condena os criminosos acusados de comprar deputados, é o mesmo Joaquim Barbosa que em 2007 julgou constitucional a tunga dos aposentados.

- Como o aumento do Estado aumenta a incidência de corrupção?
- Em razão direta.

- A corrupção política ocorrente no Brasil restringe-se a alguns partidos ou é totalmente disseminada?
- No Brasil, um político só não é corrupto enquanto não tem a chance de sê-lo.

- Há exceções?
- Se há, é só nos primeiros meses de exercício do cargo. Logo depois, o político tem de fazer alianças, concessões.

- Comente alguns casos notórios de corrupção, explicando como poderiam ser evitados.
- Muito exaustivo, senão impossível para uma só pessoa. Isso é trabalho para equipes. Veja e outros jornais têm sites especializados no assunto, é só procurar.

- Como os jornalistas podem contribuir para combater a corrupção?
- Denunciando a corrupção, como têm denunciado. A imprensa sempre tem saído à frente nas denúncias de corrupção. Ministério Público e polícia geralmente seguem a reboque. Mas atenção: jornalista não julga nem pune. Seu trabalho não vai além de denunciar.

- Você atribui a vantagem da imprensa a quais fatores?
- Bom, jornalista tem de investigar. Esta é a função do jornalismo.

- Como o índice de liberdade de imprensa afeta este combate?
- É conditio sine qua non. Com imprensa amordaçada, não há denúncia nenhuma. O PT sabe muito bem disso e há horas vem lutando pelo que chama de “controle social da imprensa”.

- Como pretendem fazê-lo? O que tal controle pode acarretar?
- Pretendem fazê-lo promulgando leis que aparentemente defendem a liberdade de imprensa. Tal controle acarretaria, obviamente, censura. Mas essa o PT não vai levar. Há no Brasil uma economia e um jornalismo suficientemente fortes que não permitirão isso.

- Como ocorre a corrupção nos meios públicos em geral?
- Como tem ocorrido. O corrupto vai enfiando a mão, vê que é correspondido, enrola políticos em suas malhas, permanece impune. Mais ainda: se é flagrado, renuncia, dá um tempo e volta ao poder eleito por grande número de votos. O povo brasileiro é conivente com a corrupção.

sábado, junho 22, 2013
 
DEU A LOUCA NA VEJA


Deus morto, escreve Albert Camus, é preciso transformar e organizar o mundo com as forças do homem. A partir deste dado, começa suas reflexões sobre a revolta histórica. Urge fazer uma distinção entre a revolução e o movimento de revolta. Spartacus não é um revolucionário, ele não quer mudar os princípios da sociedade romana. Ele se bate para que o escravo tenha direitos iguais aos do senhor, recusa a servidão e quer a igualdade com seu amo. Esta vontade de igualdade o conduzirá ao desejo de tomar o lugar do amo.

A revolução, por sua vez, é a mudança total. A partir da concepção astronômica de revolução – movimento que fecha um ciclo, que passa de um regime a outro após uma translação completa – Camus precisa sua definição. A revolução implica uma mudança do regime de governo. Para que uma mudança econômica seja uma revolução econômica é preciso que ela seja ao mesmo tempo política. Sejam seus meios sangrentos ou pacíficos, é a mudança política, a mudança de governo, que distinguirá a revolução da revolta. Esta dicotomia fundamental é posta em relevo pela frase célebre, citada por Camus: "Não, Sir, não se trata de uma revolta, mas de uma revolução".

Comentei esta distinção feita por Camus há dois anos, quando Tunísia e Egito derrubaram suas ditaduras e o movimento tendia a espalhar-se por outros países árabes e africanos. As manchetes todas falavam em revoluções democráticas. Quem hoje ousa falar em revoluções democráticas no mundo árabe?

Pelo jeito, deu a louca na Veja. Em edição que intitula como histórica, tem como chamada de capa:

OS SETE DIAS QUE MUDARAM O BRASIL

Salvo engano, Brasil é este país em que vivo e no qual agora escrevo. Para qualquer lado que olhe, não vejo mudança alguma. Salvo alguns prédios e carros depredados, mas isso nada tem de novo no país. Verdade que uma dúzia de cidades andaram baixando em alguns centavos a tarifa do transporte coletivo. Mas isto está longe de mudar qualquer país. Procuro a reportagem para ver o que mudou. Vamos lá:

“O PT acreditava que a paixão dos brasileiros pelo futebol seria exacerbada pelas Copas, de tal forma que ninguém mais notaria a corrupção e a ineficiência do governo. Errou feio. Os cartazes das ruas fizeram das Copas símbolos odiados do gasto público de péssima qualidade, do desvio de dinheiro e do abuso de poder”.

Símbolos odiados? Odiados por alguns gatos pingados. Os estádios estiveram lotados nesta Copa e isso que nem é a Copa do mundo, a que de fato inflama paixões. Veja superestima a multidão das ruas. Consta que foram um milhão na quinta-feira passada.

A situação não é tão grave como parece ser – comentei ontem -. Um milhão de pessoas nas ruas é 0,5 da população. A transmissão contínua das televisões dá a idéia de um país em chamas. Ora, longe disso. Meu bairro continua em seu mesmo ritmo. Todo mundo comprando, trabalhando, comendo, bebendo. O mesmo ocorrerá em dezenas, centenas de outros bairros, em São Paulo e no país todo. Vistas pela televisão, as cidades parecem ser puro caos. Não são. Caos só em dois ou três pontos do centro e nas avenidas onde os “jovens” se concentram.

Se o país mudou, não fui avisado. Veja continua insistindo em sua tese:

“Em 1992, em gesto de desespero, o então presidente Fernando Collor convocou os brasileiros a sair às ruas de verde e amarelo. O povo saiu de preto e ele saiu do palácio do Planalto. (...) Lula mandou os sindicalistas se fingirem de povo e o resultado foi o mesmo. Cascudos nos intrusos e bandeiras queimadas e rasgadas. Os esquerdistas tiveram de ouvir um dos mais elegantes xingamentos da história mundial das manifestações: “Oportunistas, oportunistas”.

Veja endossa a tese de que foram os cara-pintadas que derrubaram Collor. Ora, quem derrubou Collor foi o Congresso. Foram os deputados que Collor, jovem e arrogante, se recusou a comprar. Lula foi mais hábil. Esteve perto de um impeachment, mas o Congresso já estava regiamente pago. Os mensaleiros que o digam. A revista também acha que alguns cascudos e algumas bandeiras queimadas em meio a uma confusão significam uma mudança no país.

No texto seguinte, Veja compara a baderna generalizada chez nous com a queda do muro de Berlim e a invasão da Áustria pelos húngaros em 89. Compara a rebelião de nações escravizadas por meio século pela União Soviética com o levante de uma meninada que até agora não soube dizer a que vem. “O comunismo acabou e a Alemanha se reunificou”, salienta a revista, para confirmar sua tese de que o petismo acabou. Ora, o petismo pode estar surpreso com o episódio, mas continua vivo e pujante enquanto houver uma nação a saquear. A União Soviética morreu de vez, dois anos depois da queda do Muro. Dona Dilma lidera as preferências dos eleitores para o próximo pleito.

Veja lembra que a frase que intitula a reportagem é de Lênin. “Até ele ficaria sem palpite se tivesse presenciado as mudanças as mudanças dos últimos dias no Brasil”. Sim, Lênin, que fuzilou o czar e sua família, que exterminou kulaks e criou gulags, certamente ficaria perplexo ao ver jornalistas chamando de revolução uns cascudos distribuídos em militantes de um partido corrupto.

“Esqueçamos os vândalos e os anarquistas, gente que não estava lutando por um governo melhor, mas por governo nenhum. A revolução verdadeira foi a que começou a ser feita pelos brasileiros que foram às ruas protestar por estar sendo mal governados” – escreve a revista, para bem salientar que de revolução se trata. Mais ainda, não é apenas revolução. É revolução verdadeira. Até dona Dilma deve estar rindo dos “revolucionários”. Quando pensava em revolução, em vez de ir para a rua portando cartazes, pegou em armas.

Que mudança de governo, que mudanças políticas, provocaram as multidões nas ruas? Nenhuma. O PT continua no poder, o PMDB também, o PSDB finge ser oposição, corruptos impunes e notórios continuam ocupando cargos no Congresso, corruptos notórios – e condenados – continuam exercendo a deputação.

De meu conhecimento, nunca a palavrinha foi tão desmoralizada. As revoluções começam com maiúsculas, continuam com minúsculas e acabam entre aspas, escreveu Ernesto Sábato. A revolução decretada por Veja começa pelo fim do caminho, entre aspas.

sexta-feira, junho 21, 2013
 
VOI CHE SIETE BRASILIANI


Nada como um dia depois do outro. No início da semana, ninguém menos que a presidente da República se orgulhava dos feitos dos “jovens”:

“O Brasil hoje acordou mais forte. A grandeza das manifestações de ontem comprovam (o plural é dela) a energia da nossa democracia, a força da voz das ruas e o civismo da nossa população. É bom ver tantos jovens e adultos, o neto, o pais, o avô juntos com a bandeira do Brasil cantando o hino nacional, dizendo com orgulho ‘eu sou brasileiro’ e defendendo um país melhor. O Brasil tem orgulho deles”, disse a presidente.

A grandeza das manifestações mesmo, só se viu ontem. VIOLÊNCIA SE ESPALHA PELO PAÍS – mancheteia a Folha de São Paulo. A linha fina é dramática:

ATOS LEVAM 1 MILHÃO ÀS RUAS MESMO APÓS QUEDA DE TARIFAS * BRASÍLIA TEM AMEAÇA AO PLANALTO E ATAQUE A MINISTÉRIOS * CONFRONTOS ATINGEM 13 CAPITAIS * EM SP, PETISTAS SÃO EXPULSOS DE PROTESTO

O relato não deixa por menos:

Mesmo após a redução em série das tarifas de ônibus, principal reivindicação dos protestos que tomaram conta do país, novos atos levaram mais de 1 milhão de pessoas às ruas e resultaram numa onda de violência e vandalismo em 13 capitais. Ocorreram ataques ou tentativas de invasão a órgãos dos Três Poderes em nove cidades. Ações de repúdio a partidos políticos foram recorrentes. Em Brasília, que contabilizou mais de 50 feridos, houve ameaça de invasão ao Palácio do Planalto e ao Congresso, depredação de órgãos como Itamaraty e Banco Central e pichação de outros dois ministérios. As manifestações atingiram cerca de cem cidades, sendo 25 capitais. Hoje há previsão de atos em cerca de 60. O protesto no Rio reuniu 300 mil pessoas e terminou num grande confronto que se espalhou pelo centro e terminou com mais de 60 feridos.

Este é o tom dos demais jornais. No pronunciamento de hoje, dona Dilma já não mais manifesta o orgulho do país pelos jovens que o depredam. Mas ainda vê um saldo positivo nas depredações: "Se aproveitarmos bem o impulso desta nova energia política, poderemos fazer, melhor e mais rápido, muita coisa que o Brasil ainda não conseguiu realizar por causa de limitações políticas e econômicas".

Para mostrar-se enérgica, condenou a violência "promovida por uma pequena minoria", que "envergonha o Brasil. O governo e a sociedade não podem aceitar que uma minoria violenta e autoritária destrua o patrimônio público e privado, ataque templos, incendeie carros, apedreje ônibus e tente levar o caos aos nossos principais centros urbanos", completou. Pediu ainda que os protestos sejam feitos de maneira "pacífica e ordeira. Os manifestantes têm o direito e a liberdade de questionar e criticar tudo. (...) Mas precisam fazer isso de forma pacífica e ordeira”.

Imagine se fosse uma grande minoria. Ora, no dia em que uma condenação da violência ou um chamado às boas maneiras for suficiente para conter a violência, o país dispensa polícia. É óbvio que a violência vai continuar. Mas, pelo jeito, os problemas do país serão em breve resolvidos. "Vou convidar os governadores e os prefeitos das principais cidades do país para grande pacto em torno da melhoria dos serviços públicos".

Amanhã, no máximo depois de amanhã, teremos no país transportes públicos e serviços de saúde escandinavos. A presidente ainda prometeu destinar a destinação de 100% dos royalties do petróleo para a educação, destinação insólita em qualquer país do mundo. A Coréia do Sul que se cuide. Em breve estará a reboque do Brasil em matéria de educação. E fez um aceno aos médicos cubanos e formados em Cuba, ao prometer trazer "de imediato milhares de médicos do exterior para ampliar o atendimento do SUS (Sistema Único de Saúde)". Como se os doentes apinhados nos corredores dos hospitais do SUS fossem de carência de material humano.

Mudou o trote da mula. Já não é “bom ver tantos jovens e adultos, o neto, o pais, o avô juntos com a bandeira do Brasil cantando o hino nacional, dizendo com orgulho ‘eu sou brasileiro’ e defendendo um país melhor”. Acontece que de promessas o inferno está cheio. Para as promessas de políticos brasileiros deve até existir uma seção especial.

Um bom amigo, perplexo, vê pela frente um 11/09. O que seria um 11/09? A deposição de dona Dilma? Há quem peça, mas não há clima para tanto. Fechamento do Congresso? Muito menos. Ora, se governo e parlamento continuam intactos, não muda nada.

Que propõem os rebelados? As novas bandeiras são mais ou menos as de sempre: saúde, educação, transportes. Estas três palavrinhas são encontradiças no discurso de todos os políticos do mundo. O governo vai tornar o SUS decente? Não vai. Educação? Se fechasse uma centena de universidades para investir na educação básica, estaria de bom tamanho. Não fará isso. Transportes? Só em São Paulo, sem ir mais longe, só tornando o carro proibitivo. Ora, o governo se orgulha de possibilitar o carro aos que não o tinham.

Os rebeldes acrescem a suas palavras de ordem o combate à corrupção. Ora, corrupção se combate com leis e polícia. Ou alguém acha que corrupto que se preze vai se intimidar só porque falam mal dele nas ruas?

Já se começa a falar em golpe. Com que roupa? Será que existe um imã oculto para liderá-lo? Fala-se em golpe da direita. Que direita? Há muito a direita virou esquerda no Brasil. E se algo resta do pensamento de direita, está escondido e envergonhado nos desvãos da nação.

Só há uma instância que pode dar golpe hoje, o PT. Se vier por esse lado, não me espantaria. Mas aí mesmo é que não vai mudar nada. Dona Dilma poderia falar em redução de impostos, uma medida que agrada a todos e depende de uma penada.

Mas dar o que ninguém está pedindo não é boa estratégia. Os “jovens” querem o quê? Se com o voto não dá certo, vai dar certo com qual trouvaille? Um governo da ágora? Mas Atenas era pequena. Não há ágora viável em um país como o Brasil. Que propõem os rebeldes? Um sistema que ainda não foi sequer imaginado? Vai ser difícil encontrá-lo. Os antigos gregos usaram até o sorteio. Em nosso caso, talvez fosse até melhor. Só com sorte mesmo teríamos políticos honestos.

Há quem fale em impedir a Copa. Seria uma vitória de bom tamanho. Mas agora é tarde. O que já foi enterrado na Copa enterrado está. E da Copa dona Dilma insistiu que não abre mão. A renúncia à Copa, do ponto de vista econômico hoje já não traria nenhuma vantagem. Seria mais uma vitória moral, neste país que trata seus cidadãos com pão e circo.

Brasileiros de minha idade devem estar lembrados de como a ditadura militar usou o futebol como euforizante da nação. Naqueles dias, as esquerdas torciam às escondidas pela seleção, para não dar a impressão de que aderiam ao anestésico oferecido pelos militares. Hoje, não abrem mão do futebol e o usam como instrumento de controle do poder. Como os militares.

Pessoalmente, não vejo saída satisfatória para esta baderna toda. Mas há algumas obviedades que não podem ser ignoradas. O país não pode viver nessa tensão contínua. Um dia é preciso retomar a vida normal. Festa tem hora de acabar.

Por outro lado, a situação não é tão grave como parece ser. Um milhão de pessoas nas ruas é 0,5 da população. A transmissão contínua das televisões dá a idéia de um país em chamas. Ora, longe disso. Meu bairro continua em seu mesmo ritmo. Todo mundo comprando, trabalhando, comendo, bebendo. O mesmo ocorrerá em dezenas, centenas de outros bairros, em São Paulo e no país todo. Vistas pela televisão, as cidades parecem ser puro caos. Não são. Caos só em dois ou três pontos do centro e nas avenidas onde os “jovens” se concentram.

Saída, só o cansaço. Honestamente, não vejo outra. Como uma febre que vai e volta, a temperatura deverá ceder nas próximas semanas. Mais adiante, tenta-se uma nova rebelião. Mais adiante ainda, uma outra. E o país continuará eternamente embalado em seu berço esplêndido.

Ou alguém acha que país que elege e reelege um operário analfabeto, conivente com a corrupção e defensor de corruptos, que elege o poste indicado pelo operário analfabeto para sucedê-lo, que elege e reelege Sarney, Collor e Renan, tem solução?

Voi che siete brasiliani, lasciate ogni speranza.

quinta-feira, junho 20, 2013
 
DIREITO AO PROTESTO DEVE
RESPEITAR OUTROS DIREITOS



Por Néviton Guedes *

Temos todos assistido — no meu caso, absolutamente surpreso — a uma exultante e incontrastável alegria, sem qualquer concessão crítica, diante dos protestos que varrem o país. A surpresa, no meu caso, decorre, sobretudo, do fato de presenciar órgãos da imprensa, intelectuais e até juristas, que deveriam guardar algum recato e distanciamento reflexivo, sem qualquer pudor, “tomando o lado” dos manifestantes e num clima de oba-oba cívico, só comparável ao final de uma Copa do Mundo, praticamente, pregando a falência — o que implica o fim — da democracia representativa. De fato, não é difícil encontrar nas chamadas redes sociais alguns conhecidos “formadores de opinião”, num verdadeiro porre de cidadania, embriagados pelo clima do politicamente correto, decretando até mesmo a morte do Estado.

Penso que estes serão dias em que muitos, rapidamente, se arrependerão pelo que andam dizendo. Lembrando o nosso eterno “Stanislaw Ponte Preta” (Sérgio Porto), no seu impagável Febeapá (Festival de Besteira que Assola o País) será “difícil ao historiador precisar o dia em que o Festival de Besteira começou a assolar o País.”

Na terça-feira (18/6), todos os comentaristas da televisão — aberta e fechada — exigiam do prefeito de São Paulo Fernando Haddad (PT) que, em aberta desconsideração às mais comezinhas regras de prudência e responsabilidade, violando normas de licitações e de contratos administrativos eventualmente existentes, sem reflexão e tempo necessário — o que só existe, como se sabe, com o respeito ao devido processo legal —, decidisse, ali mesmo, no joelho, pela imediata redução de tarifas públicas. Como se sabe, a menos que também isso tenha sido revogado pelos revolucionários das redes sociais, no Brasil, conforme expressos dispositivos constitucionais: 1) ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; 2) aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes; e 3) a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.

Não que eu morra de amores por empresários de transporte coletivo (especialmente, morando em Brasília), mas quero crer que, em todas as capitais, especialmente, numa cidade como São Paulo, existam contratos e atos administrativos, decorrentes de longos processos licitatórios, mediante os quais foram concedidos os serviços de transporte urbano a esses empresários e de onde nasceram direitos e obrigações.

Quero deixar bem claro que não estou a afirmar que alguma redução de tarifas públicas não seja possível. Mas, a menos que joguemos fora todos os manuais de Direito Constitucional e de Direito Administrativo, não percebo como isso seja legítima e juridicamente realizável, como disse, no joelho do administrador, sem devido processo legal, e mais do que isso, como querem os militantes do “Movimento Passe Livre”, sob influxo irrefletido de passeatas ou de assembleias públicas (pacíficas ou não).

À vista do noticiário do dia 18 de junho, se não me falha a inteligência, o mais nefasto efeito desse comportamento da mídia e de alguns intelectuais consiste, precisamente, em insuflar e dar razão (ainda que o negando) a um bando de criminosos que – diante de um Estado e de governantes acuados e inertes – encontraram solo propício para desenvolver, a céu aberto e sob a vista de todos, os mais descontrolados atos de vandalismo e crimes contra o patrimônio público e privado, acompanhados de ameaça e agressão à vida e à integridade física de particulares e agentes do Estado. De fato, como costumo dizer a meus alunos, no Brasil o impossível é apenas uma alternativa.

Ao deslegitimar a decisão do prefeito e do governador de São Paulo, em não cederem naquele momento — “sem mais” e de inopino — à reivindicação dos manifestantes, a imprensa nacional, ainda que, buscando distinguir a maioria pacífica da minoria de vândalos, em ato inédito no mundo, legitimou — ainda que não o quisesse — toda e qualquer ação contra o poder público. Para ficar num exemplo emblemático, assim como vários outros comentadores, uma famosa jornalista brasileira, abertamente, atribuiu ao prefeito de São Paulo os atos de vandalismo que praticaram contra o prédio da Prefeitura.

Contudo, não é só isso. O comportamento da mídia é absolutamente infausto em outro sentido, pois deseduca a cidadania. Um conhecido âncora da televisão brasileira, depois de elogiar os protestos coletivos “pacíficos”, enquanto criticava sem qualquer concessão a ação do poder público, deslegitimando-o, foi surpreendido com duas pesquisas de opinião, promovidas simultaneamente, no seu programa, em que se perguntava aos telespectadores se concordavam com “protestos com baderna”.

Para a surpresa do afamado “formador de opinião”, que criticava as manifestações violentas, mas apenas depois de deslegitimar com sua fala o Estado e os poderes públicos, a resposta foi positiva, com mais de 3 mil pessoas respondendo “sim” aos “protestos com baderna”, contra menos de “900” prudentes cidadãos, que conseguiram superar a deslegitimação do Estado, diária e permanentemente promovida pela mídia, e responderam não.

Agora, o que se assiste país afora são autoridades e órgãos de segurança pública receosos de agir, mesmo diante dos mais escandalosos casos de barbárie coletiva. Diante de tudo isso, sobretudo diante da inércia do poder público, paralisando a ação da polícia, mesmo diante dos mais desabridos atos de vandalismo e criminalidade bandoleira a que fomos submetidos (depredação, selvageria, agressão, baderna e arruaça), a pergunta que devemos nos colocar é a seguinte: existe mesmo — como querem os românticos — a possibilidade de liberdade e de cidadania sem a segurança e presença do Estado? Ou, de outro modo: podemos mesmo, sem maior consequência, deslegitimar os poderes públicos?

Pois bem. Não importa a forma de concebermos a relação existente entre liberdade e segurança, ninguém racionalmente poderá negar que a segurança é um pressuposto da liberdade. De fato, como se sabe, toda a filosofia que inspirou as teorias contratualistas (Locke, Hobbes, Rousseau) encontrava seu eixo na premissa de que o Estado justificava a sua existência, precisamente, na necessidade de proteger e assegurar a liberdade e o patrimônio de seus cidadãos. Sendo certo que por patrimônio a maior parte dos contratualistas (como Hobbes e Locke) entendia não apenas a propriedade em estrita consideração, mas tudo o que o indivíduo tem “como seu” (vida, liberdade, propriedade etc).

Não é preciso ameaçar ninguém com a “guerra de todos contra todos”, que Hobbes enxergava na ausência do Estado, para entender que, pelo menos na atual evolução do homem e da sociedade, o Estado é absolutamente imprescindível para, mediante a segurança pública e seus poderes, resguardar a liberdade dos cidadãos. Quem conspira contra os poderes legítimos do Estado deve estocar comida e armas para sua autodefesa e proteção. (...)

* Néviton Guedes é desembargador federal do TRF da 1ª Região e doutor em Direito pela Universidade de Coimbra.

quarta-feira, junho 19, 2013
 
O QUE A
WIKIPEDIA
NÃO CONTA *



Internet é uma benção para as comunicações e para a liberdade de expressão. Hoje, com um mínimo de habilidade, qualquer pessoa pode tornar-se jornalista, escritor ou editor e encontrar seus nichos de leitores. Mas há muito lixo na rede. Pior ainda, lixo travestido de erudição. Falo da Wikipedia, a enciclopédia on line feita por qualquer um que se habilite a criar um verbete. Terá muita informação de qualidade, mas também é pródiga em mentiras.

Um amigo, que precisava do esquema de cabeamento de uma tomada DIN (norma alemã), não o encontrou nem no site da DIN. Mas achou exatamente o que lhe era necessário para fazer um cabo na... WikiPedia! Pode ser. Mas eu busquei por informações menos técnicas.

Procurei, por exemplo, por Osho, vigarista hindu, antes chamado Rajneesh Chandra Mohan Jain, e mais conhecido nos anos 70 como Bhagwan Shree Rajneesh. Diz a Wikipedia:

“Rajneesh escreveu vários livros, que até hoje fazem muito sucesso em muitos países, inclusive o Brasil, país em que tem um pequeno mas muito ativo grupo de seguidores, espalhado em muitos dos grandes centros e em algumas comunidades mais afastadas. Muitos desses seguidores exercem algum tipo de atividade terapêutica alternativa, como por exemplo a "Osho Pulsation", Danças Sagradas", "Biodanza, práticas de Shamanismo e a assim chamada "meditação dinâmica" (há quem diga tratar-se de um exercício aeróbico que promove embriaguez por hiperventilação). Seus seguidores ("Sannyasins") o apresentam como um grande contestador e libertador. Seu ensinamento sem dúvida enfatizava bastante a busca de liberdade pessoal e apresentava uma atitude mordaz em relação à tradição e à autoridade estabelecida”.

Tudo muito edificante. O que Wikipedia não diz, é que Osho – ou Rajneesh – se dizia Deus, fez fortuna enganando jovens e provocou um escândalo internacional com suas cerimônias tântricas, em verdade alegres orgias sexuais. Possuía terrenos, hotéis, uma rede de casa de massagens na Europa – isto é, prostituição – e uma frota de 91 Rolls-Royces. Acusado de perversão, realização de lavagem cerebral e sonegação de impostos, foi deportado dos Estados Unidos para a Índia, onde morreu de Aids.

Nos EUA, respondeu por 35 acusações e foi condenado a dez anos de prisão com sursis. Foi expulso também da Grécia, foi rechaçado da Alemanha e da Espanha, só conseguiu entrar na Irlanda porque seu piloto alegou ter um doente a bordo. Sua secretária Sheela Birustiel-Silvermann (Ma Anad Sheela) foi extraditada da Alemanha, onde estava no cárcere em Bühl, e foi condenada pelo tribunal federal de Portland (Oregon), em 86, a quatro anos e meio de prisão, por fraude e envenenamento alimentar. A investigação revelou que centenas de jovens mulheres foram constrangidas a aceitar uma operação de esterilização. Rajneesh não tem biografia, mas folha corrida. Isto, a Wikipedia não diz.

Busquei depois a biografia de Rigoberta Menchú Tum, a guatemalteca que obteve em 1992 o prêmio Nobel da Paz. A Wikipedia é generosa. Diz que Rigoberta se envolveu em atividades sociais reformistas através da Igreja Católica e se tornou proeminente nos movimentos dos direitos das mulheres. Em 79, seu irmão teria sido aprisionado, torturado e morto pelo exército guatemalteco. Em 81, fugiu para o México, onde organizou a resistência contra a opressão na Guatemala e a luta pelos direitos indígenas. Em 1983, contou sua vida a Elisabeth Burgos Debray, mulher de Régis Debray, o delator de Che Guevara na Bolívia.. O livro resultante, publicado em ingles como I, Rigoberta Menchú, é um absorvente documento humano que atraiu considerável atenção internacional.

O que a Wikipedia não conta é que Rigoberta Menchú é um solene embuste. David Stoll, em seu livro Rigoberta Menchú and the Story of All Poor Guatemalans, mostra que a prestigiada militante em pouco ou nada difere de outros vigaristas já galardoados com os prêmios Nobel da Literatura ou da Paz, essas duas láureas jogadas de vez em quando pelos louros nórdicos aos nativos e mestiços do Terceiro Mundo.

Segundo Stoll, a premiada com o Nobel descreve com freqüência "experiências pelas quais nunca passou". Em seu livro, afirma nunca ter freqüentado escola, nem saber ler, escrever ou falar espanhol até a época em que ditou sua autobiografia. Mas sua incultura era postiça: recebeu o equivalente à instrução ginasial em internatos particulares mantidos por freiras católicas. A luta de Menchú e outros indígenas pela terra, contra latifundiários de origem européia, era em verdade uma antiga rixa familiar de seu pai contra parentes próximos. O irmão mais jovem que dizia ter visto morrer de fome nunca existiu. Um outro, que dizia ter visto morrer queimado, não morreu queimado nem ela viu sua morte. Isto a Wikipedia não conta.

Procuro o verbete sobre Madre Teresa de Calcutá. Considerada a missionária do século XX, concretizou o projecto de apoiar e recuperar os desprotegidos na Índia. Através da sua congregação As Missionárias da Caridade, partiu em direção à conquista de um mundo que acabou rendido ao seu apelo de ajudar o mais pobre dos pobres.

Terceira filha de um rico comerciante albanês, Agnes Gonxha Bojaxhiu estudou até aos 12 anos num colégio estatal da actual Croácia. Durante a década de 20, foi solista no coro da igreja da sua aldeia e chegou mesmo a dirigi-lo. Deixou a sua casa aos 18 anos para entrar na Congregação das Irmãs de Nossa Senhora do Loreto, em Rathfarnham, perto de Dublin, na Irlanda, onde foi acolhida como postulante. Em 1931, partiu para a Índia, para a cidade de Darjeeling, onde fez o noviciado no colégio das Irmãs de Loreto.

No dia 24 de maio de 1931, fez a profissão religiosa e emitiu os votos temporários de pobreza, castidade e obediência tomando o nome de Teresa. De Darjeeling passou para Calcutá, onde exerceu, durante os anos 30 e 40, a docência em Geografia no Colégio bengalês de Sta Mary, também pertencente à congregação de Nossa Senhora do Loreto. Impressionada com os problemas sociais da Índia que se refletiam nas condições de vida das crianças, mulheres e velhos que viviam na rua e em absoluta miséria, fez a profissão perpétua a 24 de Maio de 1937.

Em 1946, decidiu reformular a sua trajetória de vida. Dois anos depois e após muita insistência, o Papa Pio XII permitiu que abandonasse as suas funções enquanto monja, para iniciar uma nova congregação de caridade, cujo objetivo era ensinar as crianças pobres a ler. Desta forma, nasceu a sua Ordem – As Missionárias da Caridade. Como hábito, escolheu o sari. Como princípios, adoptou o abandono de todos os bens materiais. O espólio de cada irmã resumia-se a um prato de esmalte, um jogo de roupa interior, um par de sandálias, um pedaço de sabão, uma almofada e um colchão, um par de lençóis, e um balde metálico com o respectivo número.

No dia 21 de dezembro de 1948, foi-lhe concedida a nacionalidade indiana. A partir de 1950 empenhou-se em auxiliar os doentes com lepra. Em 1965, o Papa Paulo VI colocou sob controlo do papado a sua congregação e deu autorização para a sua expansão a outros países. Centros de apoio a leprosos, velhos, cegos e doentes com VIH surgiram em várias cidades do mundo, bem como escolas, orfanatos e trabalhos de reabilitação com presidiários. Em 1979, ganhou o prêmio Nobel da Paz. Morreu em 1997, com 87 anos e foi beatificada em outubro de 2003.

Isto, e mais um pouco, é o que a Wikipedia diz sobre a Madre Teresa de Calcutá. Supõe-se que em breve será reconhecida pelo Vaticano como santa. O que falta dizer é que Agnes Gonxha Bojaxhiu costumava depositar flores na tumba de seu conterrâneo, Enver Hoxha, um dos mais sanguinários ditadores comunistas do século passado. No Haiti, durante a tirania de Baby Doc, recebeu de suas mãos a "Légion d'honneur" haitiana. Junto à Suprema Corte dos Estados Unidos, pediu clemência para Charles Keating, vigarista condenado a dez anos de prisão por lesar os contribuintes americanos em 252 milhões de dólares. Deste senhor, Madre Teresa recebeu a simpática quantia de 1,25 milhão de dólares e a oferta de um jato privado para suas viagens. Isto a Wikipedia não conta.

Terá muita coisa boa a enciclopédia. Mas quando seus verbetes tratam de ideologia ou religião, revela-se um desastre.

* 04/12/05

terça-feira, junho 18, 2013
 
BRASIL SE ORGULHA
DE SEUS VÂNDALOS,
DIZ DONA DILMA



Há jornalistas pretendendo apagar fogo com gasolina, escrevia eu ontem. Não bastassem os jornalistas, os políticos vieram dar sua contribuição ao alastramento da fogueira. Dona Dilma, querendo tirar o seu da reta, apressou-se em dizer que depredar ônibus, carros e bancos são manifestações pacíficas próprias da democracia.

“O Brasil hoje acordou mais forte. A grandeza das manifestações de ontem comprovam (o plural é dela) a energia da nossa democracia, a força da voz das ruas e o civismo da nossa população. É bom ver tantos jovens e adultos, o neto, o pais, o avô juntos com a bandeira do Brasil cantando o hino nacional, dizendo com orgulho ‘eu sou brasileiro’ e defendendo um país melhor. O Brasil tem orgulho deles”, disse a presidente.

Temos então que o Brasil se orgulha de seus baderneiros. Fernando Henrique Cardoso, que de seu glorioso climatério assiste de camarote os distúrbios de rua, perdeu uma ocasião única de ficar calado. Desqualificar os protestos dos jovens em São Paulo e outras capitais "como se fossem ação de baderneiros" constitui, na avaliação do ex-presidente, "um grave erro". Para ele, "dizer que essas manifestações são violentas é parcial e não resolve. É melhor entendê-las, perceber que essas manifestações decorrem da carestia, da má qualidade dos serviços públicos, das injustiças, da corrupção".

Enquanto dizia isso, os “jovens” arrombavam os portões do palácio Bandeirantes, onde governa seu companheiro de partido, Geraldo Alckmin. Agora só está faltando o governador vir a público para dizer que o arrombamento da porta do palácio Bandeirantes é uma manifestação legítima e própria da democracia – pensei com meus botões. O que não me espantaria se ocorresse.

Faltava. É que eu não havia lido os jornais. Alckmin, que na semana passada classificara os manifestantes como "vândalos" e "baderneiros", agora acode com panos quentes: "Queria fazer um elogio às lideranças do movimento e também à segurança pública e à Polícia Militar”. Para o governador, a primeira reunião com os utópicos desvairados do Movimento Passe Livre (MPL) foi positiva. "Foi uma reunião muito madura, muito proveitosa."

Ora, se um ex-presidente, a atual presidente e o governador de São Paulo aplaudem os “jovens”, se governo e oposição endossam a violência, que resta aos "jovens" fazer? No mínimo, invadir a prefeitura de São Paulo. Que é o que estão tentando fazer enquanto escrevo estas linhas. Até agora, cinco portas de vidro já foram destruídas. Os manifestantes – doravante chamados de radicais - picharam as paredes da prefeitura, quebraram vidros laterais do prédio, atearam fogo em um carro da Record, em uma cabine da PM e saquearam duas lojas.

Pelo jeito, temos agora os baderneiros do Mal (PSTU, PCO, Psol) e os baderneiros do Bem, os jovens sonhadores que consertarão o país impedindo o trânsito nas ruas. O projeto maluco do MPL, em verdade já foi do PT, quando a cândida Erundina era prefeita de São Paulo. O custo do passe livre seria repassado ao IPTU. Simples assim. Cria cuervos y te picarán los ojos – dizem os espanhóis. O projeto da petista se volta agora contra o PT.

Do dia para a noite, o que era uma reivindicação por 20 centavos transformou-se, em muito graças à benevolência da imprensa, em um projeto de salvação nacional. Segundo a Veja, “a data entra para os livros de história e deixa um rastro de interrogações. O cardápio de reivindicações dos manifestantes era amplo e difuso: mais investimentos na saúde, mais dinheiro na educação, transporte público barato, fim da corrupção, rejeição do projeto de emenda constitucional que retira poderes de investigação do Ministério Público – e ainda questões locais”.

As bandeiras se multiplicaram, desde a exigência da renúncia de Renan Calheiros e do pastor Feliciano à libertação da Palestina. Curiosamente – ou melhor, sintomaticamente – manifestante algum pediu punição para os mensaleiros. Quando as manifestações se transformam em projeto nacional, e quando a presidente manifesta seu orgulho pelo espírito patriótico dos baderneiros, alguns prefeitos – o de São Paulo, inclusive – falam em reduzir tarifas de transporte. A revolução retoma suas modestas pretensões.

Perguntinha a quem interessar possa: quando na história uma rebelião de jovens resultou em algo profícuo para uma nação? No fundo, trata-se de um défoulement – como dizem os franceses – que tem fases cíclicas. Ano que vem, com a Copa do Mundo, sem dúvida alguma teremos uma explosão de sonhos dos “jovens”.

O resultado final de todas essas depredações será zero. Quem pagará a conta será o país, com horas de trabalho perdidas e prédios e ônibus depredados. Mas, como diz a presidente, o Brasil tem orgulho de seus vândalos.

segunda-feira, junho 17, 2013
 
APAGANDO FOGO
COM GASOLINA



Que jovens cometam besteiras, nada de anormal. É típico dos jovens. Gosto de citar Roberto Arlt: “Com quem faremos a revolução? Com os jovens. São estúpidos e entusiastas”.

Antes de ir adiante, já vou anunciando a breve reedição de minha tradução de Os Sete Loucos, em versão eletrônica, como também a de Os Lança-chamas, que na verdade constituem um só livro. Quem viver, lerá. Volto aos jovens.

Alguém ainda lembra do Occupy Wall Street? Dos indignados de Madri? Dos incêndios e depredações em Londres? Se alguém ainda lembra, pergunto: resultaram em quê? Além dos prejuízos às prefeituras e particulares, o resultado foi redondamente zero. Que jovens cometam besteiras, dizia, nada de anormal.

Anormal é ver a imprensa – que não é constituída exatamente por jovens – buscando encontrar motivações nobres e altruístas para o vandalismo e açulando os malucos de todos os países para partir para a depredação. Jornalista não é ingênuo. Pode ser mau caráter, mas ingênuo não é.

Não faltará quem fale em primavera paulistana – escrevi há pouco. Bom, em primavera paulistana não se falou. Os defensores incondicionais dos jovens foram mais longe: falaram em primavera brasileira. Já há quem compare a baderna a Maio 68, esta formidável ficção criada pela imprensa. Pois Maio 68, quando tido como revolução, não passa de ficção.

Pas de sang, trop de sperme – dizem os franceses ao referir-se àquele maio. Quais transformações decorreram de lá para cá? Que me conste, a Sorbonne deixou de chamar-se Sorbonne e as universidades parisienses passaram a ser designadas por números. Ah! e foi criada a famosa Paris 8 – ou Paris Vincennes – chamada por uma ministra da Educação de poubelle du Thiers Monde, isto é, lata de lixo do Terceiro Mundo.

A universidade criada em 68 era tão reputada que seus egressos não ousavam dizer seu nome, digo, seu número. Quando alguém diz ser formado pela Université de Paris, desconfie. Tem boas chances de ser formado pela Paris 8. Este foi o saldo de 68. O resto é criação das mentes férteis do jornalismo.

Ainda há pouco, um leitor me objetava: mas e a condição subalterna das mulheres antes de 68? E os homoafetivos que eram vistos como não-humanos? Condição subalterna das mulheres na França de Mistinguett, Edith Piaf, Simone de Beauvoir, Marguerite Yourcenar? A condição de mulher livre da Beauvoir era tão pública e notória que, ao publicar O Segundo Sexo, o escritor católico Paul Claudel comentou: “Mais on sait déjà tout sur le vagin de cette dame”. E quando Yourcenar foi saudada como a primeira mulher a entrar na Academia de Letras Francesa, não faltou quem comentasse: você tem certeza?

Por outro lado, em 68 não existiam homoafetivos. Eram homossexuais mesmo. Aliás, homoafetivos só existem no Brasil. No resto do mundo, atendem pela antiga nomenclatura. Mas pode-se dizer que eram vistos como não-humanos, na França de Verlaine e Rimbaud, Proust e Gide, Jean Cocteau e Jean Genet?

Proust foi celebrado como gênio. Gide foi prêmio Nobel em 1947. Mas já no início do século fazia a franca defesa do homossexualismo, em Corydon. Gostava de caçar carne fresca em mictórios públicos. Alertado por amigos de estar se expondo demais, foi objetivo: “Mon Nobel me donne couverture”.

É fácil atribuir, ao longo do tempo que passa, virtudes a um movimento, virtudes que este movimento não teve. Hoje, o tempo nem precisa passar, a ficção vai sendo elaborada na hora. Os celerados que têm como bandeira o transporte gratuito – e só por isso deviam ser considerados inimigos de todo cidadão que trabalha e vai acabar pagando por tal transporte gratuito – já são vistos como sonhadores de um mundo melhor.

Temos um exemplo lapidar no Brasil da atribuição de virtudes inexistentes a movimentos sociais. Os vândalos de hoje já estão sendo comparados aos cara-pintadas de 92, que “derrubaram Collor de Mello”. Ora, os tais de cara-pintadas, que saíram às pressas às ruas para não perder a ocasião de posar para a imprensa, não derrubaram ninguém. Quem derrubou Collor foi o Congresso. E por que derrubou? Porque Collor, jovem e arrogante, não comprou o voto dos congressistas. Tivesse pensado em um mensalão, teria sido reeleito. Pode-se até mesmo dizer que quem derrubou Collor foi o próprio Collor de Mello.

No fundo dos protestos no Ocidente há uma nítida vontade marxista que não ousa mais dizer seu nome, a derrubada do capitalismo. Que ninguém os compare com os protestos no mundo árabe, onde há um desejo de capitalismo e liberdade. Aliás, já nem se ousa pronunciar o nome da coisa abominável. A palavrinha criada por Marx tornou-se tão obsoleta quanto Marx. Fala-se então em neoliberalismo.

Acontece que o capitalismo – ou neoliberalismo, como quiserem – emergiu triunfante na história após a derrocada do socialismo soviético. Ainda há pouco, um jornalista da Veja manifestava seu espanto ante o fato de que uma universidade patrocinasse cursos de marxismo. Ora, quem mais vai patrocinar? Por uma universidade veio o marxismo ao Brasil, a USP. Hoje, só universidades podem financiar utopias desvairadas.

“Não é preciso doutorado em sociologia ou psicologia para saber que, quanto mais violência for usada contra os jovens, maior será a violência de sua reação – escreveu ontem no Estadão Juan Arias, correspondente do El País no Brasil -. Sempre se disse que os jovens têm vocação para incendiário, até que completam 40 anos e passam a agir como bombeiro para apagar o fogo da contestação. Se movimentos de pessoas indignadas em todo o mundo fizeram amanhecer novas primaveras de esperança de mais democracia, é de se esperar que também o Brasil saia dessas manifestações de rua e protestos por causas justas mais fortalecido em sua democracia, conquistada com tanta dor, tortura e morte. Um país que encurrala seus jovens por medo de suas reivindicações é um país perdedor”.

Pretende o correspondente que o Estado entregue as cidades aos predadores? Que a polícia contemple de braços cruzados os “jovens” quebrando ônibus, metrôs e bancos? Quando que movimentos de pessoas indignadas em todo o mundo fizeram amanhecer novas primaveras de esperança de mais democracia?

Movimentos de pessoas indignadas só conturbam as cidades e atrapalham a vida de quem os sustenta. Pois são pessoas que não trabalham. Quem trabalha, não tem tempo nem disposição para ir até as ruas para enfrentar a polícia. Há jornalistas pretendendo apagar fogo com gasolina.

domingo, junho 16, 2013
 
PREFÁCIO E CRÍTICA DO PREFÁCIO
AOS POEMAS DO HOMEM DE ORION



PREFÁCIO
Um orionino inadaptado
Janer Cristaldo *

Desde minhas universidades venho acompanhando o trabalho tenaz e infatigável de Carlos Ducatti. Homem de preocupações cósmicas, nada do que é terráqueo a si alheio reputa, lutando tanto pela construção de um espaçoporto no Brasil para receber nossos vizinhos de outras galáxias como elaborando uma complexa parafernália destinada a exterminar pardais, ave monopolista e predatória (sem alusão alguma ao Bonfim, por favor!), cuja algaravia, além do mais, fere seus ouvidos.

Doublé de cientista e poeta, criador e animador do Clube Nova Era, viajante astral, Ducatti é filho dos mais sintomáticos deste século conturbado. Exaustas as religiões, falidas as ideologias, é através da Razão – esta nova deusa — que Ducatti buscará Deus. Recente exposição sua — praticamente ignorada por uma imprensa superficial, encharcada de crimes e futebol – nos trazia a dedução matemática da existência de Deus. Jorge Luis Borges disse alhures crer na teologia como literatura fantástica, “es la perfección del género". O pensamento ducattiano move-se paralelamente ao de Borges, quando, em Teociência, diz ser a matemática "abstrata, intemporal, onipresente (...) não tem emoções e numa esfera se revela melhor. Assim como Deus". Lemos, aliás, em sua súmula biográfica, referência ao ponto Aleph, outro tema típico da teodicéia - se assim podemos dizer — borgesiana.

Ducatti nasceu em Cruz Alta, RS, comuna que já deu ao Brasil um não menor talento, mas descobriu que provém espiritualmente do planeta Orion e, como tal, sente-se entre nós inadaptado. “Não me adapto à Terra, por demais grotesca para minha sensibilidade”.

Mas quem se adapta, meu caro? Neste sentido, somos iodos um pouco orioninos inadaptados, com a diferença que não ousamos soltar as rédeas ao sonho. Enquanto as autoridades porto-alegrenses, nestes dias de canícula, não resolvem a contento o problema das fugas em massa para o litoral, o poeta nos relata o caso do planeta Silonado, que “abrigava, em sua face, um povinho alaranjado". Dos vinte meses anuais do planeta, cinco eram de verão atroz. Os administradores de Silonado, aos quais a burocracia terrestre causaria horror, encontraram singela e racional saída ao impasse: “Resolveu-se desta forma, / cinco meses, na região / congelar o povo inteiro / no intervalo de verão. / Construíram, para isto, / milhares de hibernadores. / Todo mundo, congelado, / passa o tempo sem calores".

Enfim, não quero roubar ao leitor a degustação da poética ducattiana. Como comparatista, só lhe vislumbro, e distante no tempo, um par: Qorpo Santo, este singular gaúcho, hoje estudado nas universidades de França, Itália e Estados Unidos, graças a Aníbal Damasceno Ferreira, nosso esquálido pesquisador do insólito, E, durante um século, Qorpo Santo foi solenemente ignorado pelos soi-disants historiadores de nossa literatura. Necessitará Ducatti de mais um século para ser entendido? Há quem o julgue louco. Assim como, também foi catalogado Qorpo Santo.

Curiosamente, é culturalmente sacrílego fazer tal afirmação a propósito daquele outro, filho da judia Maria e do soldado romano Pantera, que percorria a Galiléia dizendo ser Deus um só, e ele, seu filho. Suas palavras invadiram o Ocidente, expulsaram os afáveis deuses pagãos, e hoje um católico, seja um leigo ou o próprio Papa, é considerado um ser mentalmente normal.

Enfim, como diz Ducatti, em um de seus poemas, onde denuncia a ditadura do consuetudinário:

“Chás de plantas mil... / Por que tomar só café / no imenso Brasil?”

Porto Alegre, 23 de novembro de 1981.

* Cristaldo é doutor em Literatura Comparada pela Université de la Sorbonne Nouvelle — Paris III.

CRÍTICA DO PREFÁCIO

Porto Alegre, 25 de novembro de 1981
Prezado Sr. Editor (Seção de Cartas):

Recebi há poucos dias, no Chalé da Praça Quinze, o prefácio de “Vibrações Poéticas”, elaborado pelo colega e amigo Janer Cristaldo. De estilo colorido e agradável, apesar de tipicamente intelectual, o trabalho tem vários defeitos a corrigir. O título já estava errado, ao incluir a palavra “orionano” (foi retificado, após). Conforme convenção informática de minha criação, válida para mundos e países, o sufixo ano (ou iano) designa habitantes de um certo lugar, e ino, seus descendentes (biológicos ou espirituais), moradores noutro lugar. Eu, por exemplo, sou italino, brasiliano (ou brasileiro) e orionino.

De 74 a 78, uma de minhas preocupações era construir um espaçoporto (elaborei até um projeto). Esqueci a idéia, pois apareceram outros grupos, no Brasil, interessados em tal objetivo. Sigo o princípio de “preencher lacunas", fazendo só aquilo que os outros não procuram fazer (e deve ser feito).

Não sei odiar. Tenho grande respeito pelas criaturas da Natureza. Adoro ver, cheirar e beijar flores. Há, entretanto, desequilíbrios ecológicos causados pela ignorância e ambição do homem. O pardal, originário da Ásia, invasor da Europa, trazido (há mais de meio século) para nosso país, é um pássaro anti-ecológico, vagabundo, arruaceiro, inimigo do tico-tico, do sabiá, etc.; constitui hoje a maior praga do Brasil. Combatê-lo é defender nossa bela e querida fauna.

Janer diz que somos todos inadaptados. . . Conforme o "Teste de Adaptação à Terra” (de minha autoria), aplicado em mais de trinta pessoas, eu sou terrivelmente inadaptado, em todos os sentidos; posso dizer que seria dificílimo encontrar um indivíduo com semelhante grau de inadaptação a este planeta. Meu principal problema é supersensibilidade crônica, e as soluções que descobri (a muito custo) até agora, não são eficientes. Para finalizar, declaro que não acredito que o Mestre Jesus tenha sido filho de um soldado romano. Suas características físicas e espirituais não se coadunam com tal idéia. Penso que seu pai era extraterrestre; ele teria sido gerado, em Maria da Galiléia, através de... “concepção cósmica" (um processo que não entendo).

Carlos A. Ducatti (cientista, filósofo e poeta)