¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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terça-feira, setembro 24, 2013
 
PALOMBA GASTA LATIM


Quando ocorre uma tragédia humana de proporções, nunca falta um psi ou um ólogo para dizer bobagens. Me refiro a psiquiatras, psicólogos, psicanalistas, antropólogos e sociólogos. Ora é uma deformação no cérebro, ora são as condições da infância, o meio social, quando não a fixação no pai e na mãe. Sempre há algo que absolve o criminoso.

Desta vez, o privilégio coube a um psiquiatra forense, no caso o dr. Guido Palomba, ao referir-se ao caso do menino que teria massacrado a família e depois se suicidado. Antes de ir adiante, foi este mesmo senhor que disse, em 2007, a propósito do rabino ladrão de gravatas:

“O rabino Henry Sobel pode ter apresentado um "estreitamento de consciência, denominado estado crepuscular pela literatura médica. Por um momento, a pessoa perde a noção da gravidade de seu ato".

Alegação interessante para o ladrão que for pego em flagrante: "Desculpe, dr. delegado, fui acometido por um estado crepuscular". Não é de hoje que o dr. Palomba diz bobagens. Está apenas recidivando.

Segundo o perito, por conta da encefalopatia, Marcelo passou a desenvolver uma perda da noção da realidade, comparada pelo psiquiatra com Dom Quixote. O portal Terra, subestimando seus leitores, esclarece que o personagem “é do livro escrito pelo escrito espanhol Miguel de Cervantes”.

“Ao matar os familiares Marcelo viu-se livre para o mundo imaginado, tornou-se de fato um justiceiro e forniu a mochila com perfume, uma calça, uma faca, um pequeno revólver e alguns rolos de papel higiênico (...) e saiu para dar andamento ao seu ideal quixotesco, na acepção exata do termo”, diz o laudo elaborado sobre o caso.

Longe de mim pretender ser psiquiatra, ocorre que o Quixote eu já li. Palomba está comparando um ente do mundo real, Marcelo, com um ente imaginário, o Quixote. Para o perito, sem os pais, o adolescente partiu rumo a um ideal “quixotesco”.

“Dom Quixote perdeu a razão depois de ler muitos livros de cavalaria (Marcelo depois de muitos videojogos) e partiu para se tornar um cavaleiro errante (Marcelo, justiceiro errante). O automóvel de Marcelo no lugar do cavalo Rocinante; a faca e o revólver em vez da lança e do escudo; Sancho Pança (o escudeiro) seria os amigos de escola, convidados no dia seguinte; a saída de Dom Quixote de um lugar de La Mancha, tal qual Marcelo de casa. (...) E ainda mais, o fim de ambos é igual em um ponto: ao retornarem ao lugar de origem, sentiram-se fracassados; porém, o cavaleiro andante morreu de tristeza e o justiceiro andante se suicidou”, diz o documento.

Não é que o Quixote tenha perdido a razão depois de ler muitos livros de cavalaria. Ocorre que Cervantes pretendeu fazer uma sátira aos livros de cavalaria da época. E atribuiu a estes o delírio do herói. Alonso Quijana teria treslido. Pelo jeito, o d Palomba também. As razões do Quixote são literárias. As de Marcelo, só Deus saberia, se existisse.

Para começar, apesar de bravo e aguerrido, Dom Quixote não mata ninguém. Tampouco lhe ocorre matar seus familiares. Rocinante é o seu matungo e arma de luta.

"Dichosa edad y siglo dichoso aquel donde saldrán a luz las famosas hazañas mías, dignas de entallarse em bronces, esculpirse en mármoles y pintarse en tablas, para memoria en lo futuro. Oh tú, sabio encantador, quienquiera que seas, a quien ha de tocar ser cronista desta peregrina historia! Ruegote que no te olvides de mi buen Rocinante, compañero eterno mío em todos mis caminos y carreras".

Considero Cervantes antes de tudo um humorista. Este trecho, a meu ver, dá o diapasão de toda sua obra. Ali está o personagem e aquilo a que vem: desfazer tortos, para glória na eternidade. Esta divertida ironia em relação a si mesmo é o que mais me fascina no Quixote.

Quixote persegue um ideal de justiça, o fulcro dos romances de cavalaria da época. Cervantes quer rir desses senhores que enfrentam exércitos e dragões, em nome de uma princesa e em busca de justiça.

O caso de Marcelo é bem mais prosaico e não merece tais vôos literários. Não é fácil entender porque alguém faz isso – e isso se faz todos os dias – e mais difícil ainda é entender que uma criança mate os seus e se mate. A meu ver, não há razão nenhuma para seu crime. Pirou e pronto. Quantas pessoas não enlouquecem da noite para o dia? A loucura só vem a público quando dela decorre uma tragédia. Decorrências menores passam despercebidas.

E da loucura, ninguém ainda descobriu as causas. Marcelo, pelo que se sabe, não perseguia ideal nenhum. Seu Rocinante – o carro, segundo Palomba – sequer era seu. A loucura é irracional e imprevisível. Se conhecemos as razões de um crime, já não é loucura.

Segundo o laudo do psiquiatra, o delírio de Marcelo começou no início deste ano, “quando passou a convidar seus amigos para fazerem parte de um grupo denominado Mercenários”. Os games fizeram com que o adolescente, que havia aprendido a atirar e dirigir com Luis Marcelo e Andréia, querer ser um herói, “mais importante que seus próprios pais. Assim, despontou a sua realidade, não mais fictícia como nos videojogos, cujos atores sempre retornam à vida, mas um mundo real que lhe satisfazia o sentimento de ser um justiceiro de verdade.”

Hoje, o bode expiatório são os vídeogames. Há uns vinte anos, eram os filmes violentos. Ora, me criei – e os leitores certamente também – vendo filmes violentos, e jamais nos ocorreu matar alguém ou massacrar a própria família. Da mesma forma, há milhões de crianças e adolescentes brincando com videogames violentos e nenhuma delas matou seus pais. Procedesse a tese de Palomba, massacre de famílias pelos filhos seria epidêmica.

O vírus da insanidade não avisa, ocorre quando menos se espera e contra ele não temos defesa. Se nós entregamos nosso pescoço à navalha do barbeiro, é porque confiamos que ele não será tomado por esta peculiar anomalia.

Talvez estivesse mais perto de uma explicação se usasse o mesmo argumento que usou para justificar o gesto do rabino, o tal de estado crepuscular, quando por um momento a pessoa perde a noção da gravidade de seu ato.

De minha parte, não vou tão longe. A meu ver, as gerações contemporâneas perderam a noção do valor de uma vida. Não passa mês sem que vejamos um assaltante matando alguém só porque este alguém andava sem dinheiro no bolso. A ninguém ocorre chamar isto de estado crespuscular de consciência, anomalia que só acomete gente fina. Tampouco ocorre citar Cervantes quando um pobre diabo de favela mata os seus.

Dr. Palomba gastou seu latim e não disse nada. O caso de Marcelo continua sendo um mistério, que nem mesmo Marcelo saberia explicar.

EM TEMPO Uma boa amiga, Laís Legg, me escreve: "Janer, imagino um laudo teu: "pirou e pronto" Ah, ah, ah. Mas eu gostei da conclusão do Palomba (milhões acham que foi a polícia quem os chacinou), realmente, o menino foi influenciado por muitas coisas, a piração foi multifatorial. E foi ele, não há dúvida, para desgosto de muitos”.
Ora, Laís, laudo é uma coisa, opinião é outra. Mais honesto é admitir que não se entende a loucura do que emitir metáforas literárias. Seja como for, o recurso ao Quixote é totalmente despropositado. Eu atestaria: "por razões que ainda nos são desconhecidas..."