¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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domingo, outubro 20, 2013
 
SÃO PAULO CHAMA


Ainda há pouco, um leitor queria saber por que não fiquei vivendo na Europa. Expus minhas razões. Um outro leitor quer saber porque escolhi para viver a caótica São Paulo. Pela mesma razão que traz tanta gente aqui: trabalho.

Em Porto Alegre, a empresa em que trabalhava, a Caldas Júnior, fora à falência enquanto eu estudava e cronicava de Paris. Fui trabalhar na universidade, em Florianópolis. Ejetado após quatro anos de magistério – e felizmente ejetado, pois a ilha é um breve contra a cultura – fui para Curitiba. Nada encontrando em Curitiba, fiz concurso para redator de Internacional na Folha de São Paulo. Trabalhei depois no Estadão e acabei voltando à Folha. De capital em capital fui subindo, sempre rumo ao trabalho, sempre rumo ao norte. E cá estou, 23 anos depois.

São Paulo chama. Cá está o maior número de empregos do país, os melhores salários. É a cidade que tem o maior número de editoras, de livrarias e de salas de cinema. A redação de qualquer jornal é uma mostragem do país todo. Se você mora em bairro bom e não longe do trabalho, a cidade pode ser aprazível. Com a Veja desta semana, veio junto um suplemento com os melhores – e apenas os melhores – bares e restaurantes da cidade. São cerca de 400 páginas. De tédio não se morre.

Minha primeira imagem à Paulicéia foi em 61, quando eu vinha para um congresso estudantil em Campinas. Eu passava de ônibus pela marginal do Tietê. Não adiantava fechar a janela, o mau cheiro atravessava o vidro. Olhei para o rio. Dois atletas faziam regata tranqüilamente em meio às águas podres. Pensei com meus botões: esta gente se acostuma a tudo, até mesmo ao fedor de um rio poluído. Jamais me acostumarei a isto. Jamais viverei em São Paulo. Santa ingenuidade, que relego ao rol de bobagens que um jovem costuma dizer.

O Brasil não tem respeito algum por suas águas. Enquanto na Europa os rios são componentes do lazer urbano, para nós constituem depósitos de lixo. Em Paris, o Sena faz a alegria da cidade. Em Londres, este papel é desempenhado pelo Tamisa. Já foram rios poluídos, mas tanto britânicos como franceses tiveram o bom senso de recuperá-los. Em 2000, passei um sábado delicioso às margens do Limmat, em Zurique. O bar se chamava Panta Rei, o que me evocou Heráclito. Me lembrei muito de São Paulo naquele sábado.

O rio, que atravessava a cidade, era cristalino, podia-se ver uma moedinha jogada em seu leito. Lá pelas tantas, alguém desceu a rampa e passou uma boa hora nadando. Nadar em um rio que atravessa o centro de uma cidade, para mim, egresso de Porto Alegre e São Paulo, pareceu-me utopia. Não era.

Estou aqui há mais de duas décadas. Daqui não sairei nem de pés juntos, já determinei que meus restos serão cremados no cemitério da Vila Alpina. É a cidade onde vivi mais tempo em minha vida. Abstraí o Tietê. Só o vejo quando vou ou volto de viagem. Durante muitos anos, assim assinei minha coluna: Janer é jornalista e sofre São Paulo. Foi quando um leitor chamou-me a atenção. “Escuta, pelo que conheço de teu perfil, São Paulo é a cidade que melhor se adapta a ti no Brasil”. O leitor tinha razão. Eliminei o bordão de minhas colunas.

É que eu via São Paulo como um todo. Em sua totalidade, a cidade é monstruosa, um emaranhado de favelas e bairros pobres, com algumas ilhas viáveis. Tomei então uma decisão intelectual: eu não vivo em São Paulo. Eu vivo em Higienópolis. Aí minha vida se tornou mais amena. O bairro não é nenhum Saint-Germain-de-Prés, mais on peut survivre, como me dizia um amigo francês.

Meus dias, eu os vivo nesta pequena geografia, muito menor que a geografia de Dom Pedrito. Não gosto de cidades verticais. Mas, enfim, tudo bem. É aqui onde está a maior parte de meus amigos e isto vale muito. Quando sinto necessidade de cafés mais sofisticados, comida diferente, outras arquiteturas, tiro o pó do passaporte e parto.

O espaço que utilizo nesta megalópole é bastante curto, não passa de uns seis quilômetros. É a distância que me separa de Vila Madalena, onde às vezes vou almoçar. No meio do caminho estão Pinheiros e Jardins, que também visito, impelido pelo desejo de bons vinhos e boa comida. Acho que só uma vez em meus dias de Paulicéia fui mais longe. Foi quando fui ao Itaim Bibi em busca de um smörgåsbord em um restaurante escandinavo. Fora isto, nada mais conheço de São Paulo. Conheço melhor Paris e Madri, onde vivi muito menos tempo. Há outros bairros interessantes. Mas ficam muito longe de meu chão. Se é para ir longe, prefiro começar por Cumbica.

São Paulo tem suas vantagens. A melhor delas: estando aqui, você não precisa fazer escala para ir a Paris. Como disse alguém, fica pertinho do Brasil, não é preciso visto de entrada e todo mundo fala português. Voltando às regatas: hoje ainda, às vezes se vê paulistanos remando em meio ao pútrido. Eu, como não remo, não tenho maiores dificuldades em assumir a cidade.