¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, março 17, 2014
 
PORTO ALEGRE SEGUNDO SAUL


Janer,

Aproveito teu comentário sobre a correlação que o Sergio Jockymann apontou entre a POA da primeira metade do Século XX e Paris, para contribuir com algumas reminiscências e percepções. Na primeira das duas crônicas, o Sergio considerou como época áurea do centro da capital gaúcha, as décadas de 40 e 50. Cheguei na última delas, mais precisamente em 1953 e, um guri adolescente com raízes nos campos de Cima da Serra e que ficoui naturalmente deslumbrado com a nova ambiência. Tive sorte neste aspecto, pois já comecei fazendo um percurso diário que significava descer do bonde na Praça XV, atravessar a Galeria Chaves e percorrer a pé a Rua da Praia até a Caldas Júnior, em cuja confluência com a Riachuelo ficava meu colégio, o Julinho, então alí provisoriamente instalado no prédio do Arquivo Público.

Com variações nos motivos, ou até bastante sem motivo, frequentei aquele eixo quase que diariamente durante os 13 anos seguintes, o que me permitiu ser testemunha ocular das transformações havidas, para o bem e para o mal, talvez muito mais para este. Em meu início, o footing com exclusividade para pedestres somente era praticado entre a Borges e o Largo do Medeiros. Apenas nos anos seguinte é que a Borges foi transposta, com a feição "calçadão" da Rua da Praia avançando progressivamente até a Dr. Flores. Como transformação para o bem, é importante que não se deixe de assinalar o surgimento da Feira do Livro na Praça da Alfândega, no ano de 1955, quando eu concluía o científico.

Acho que a "alma" da P. Alegre de então não buscava espelhar-se em Paris. O modelo estava bem mais próximo, em Buenos Aires. Esta é que procurava emular Paris e, assim, o alvo da nossa POA era atenuado e contido no degrau portenho, intermediário. O Jockymann, entre várias nostalgias, cita os cafés e destes, efetivamente, havia inúmeros, com seus aromas, sons e vai-e-vem de frequentadores. Um dos mais interessantes era o Marrocos, que ficava onde mais tarde foi construído o atual Ed. Sta. Cruz, no nº 1234 da Andradas. Na frente era café e, aos fundos e separado por uma parede-biombo à meia altura, um bar com as tradicionais mesas de mármore e tendo uma orquestra típica a desfilar os tangos de praxe. Um tempo depois o local foi fechado para reforma e reabriu com o nome de Indiana, creio que já sem a típica. Novo fechamento para a longuíssima construção do edifício citado levou o local a reabrir como uma grande e ótima lancheria de nome Rian, isso antes de virar a atual e prosaica farmácia.

Nas tuas lembranças anotaste as qualidades da Rottisserie Pelotense, na Riachuelo. Anteriormente, a Pelotense e as mesmas mesas de mármore estavam no lado esquerdo de quem desce a Rua da Praia, um pouco acima da embocadura da Rua Uruguai, ao lado da loja de calçados Clark de então e onde hoje é uma filial das Lojas Americanas. Nos fins de tarde as mesas de mármore avançavam para a calçada, sendo possível assistir-se ao movimento na "primeira fila", degustando o chopp e, principalmente, os bolinhos de bacalhau que tornaram a casa famosa. Naturalmente nessa época e dada a dimensão da minha "receita" de estudante, eu era apenas um espectador itinerante de tais iguarías. Lá embaixo, antes do Largo e na esquina com a Ladeira, ficava o Restaurante Shangri-Lá, que esteve ali por décadas mas do qual não há mais referências nem mesmo nos textos de historiadores do logradouro. Era nessa esquina do Shangri-Lá que a popular jornaleira Maria Chorona apregoava diariamente o Correio do Povo.

Entre as citações no Mercado Público, faltou a inclusão do Guaraxaim, do mesmo nível ou até melhor que o Treviso, embora de tamanho menor. Fui ali pela primeira vez em meados de 1942, levado por meu pai e lembro que comemos garoupa à milanesa. No alto do balcão, à entrada, havia um Guaraxaim empalhado e, acima, viam-se aqueles ventiladores de teto de pás enormes, girando lentamente, num quadro de imagens que depois reconheci em cenas de filmes veiculando histórias do período do colonialismo inglês, um pouco a la Joseph Conrad.

A expulsão de todos esses serviços que fizeram da Rua da Praia o que ela era, para dar lugar aos bancos, ocorreu em meados da década de 60, numa invasão que veio do lado da Rua 7 de Setembro, então a meca dos bancos. Em pouco tempo, o trecho Borges - Largo ficou totalmente desfigurado e apenas como corredor de passagem para a obrigatória ida aos cinemas, naqueles tempos antes do domínio da televisão. Resistiram por algum tempo lojas mais tradicionais, como a Casa Sloper, a Casa das Sedas e a Casa Victor. O footing e as rodas de bate-papo no meio da rua transferiram-se totalmente para o trecho acima da Borges, com "âncoras" de referência para facilitar a localização e aglutinar as "tribos" que ficavam situadas defronte à Galeria Chaves, à Casa Masson e à Casa Krahe, principalmente.

Voltando ao que nos encanta numa cidade e nos faz estabelecer semelhanças com outras conhecidas ou imaginadas, acho que se trata de um fenômeno que, vez por outra, pessoas que gostam de viajar e tentar identificar o espírito de uma nova metrópole experimentam, numa forma quase de "revelação mística". Lembro de haver sentido isso em Barcelona, talvez a única das cidades que conheço, além de P. Alegre, que me fariam aceitar sem hesitação uma eventual "condenação" no sentido de ser obrigado a viver permanentemente em alguma delas para o resto de meus dias. Em relação a P. Alegre, basta reler aquele poema O Mapa, do Mario Quintana, e o sentimento de pertinência ao lugar nos invade. Há lugar também para o bairrismo puro e simples, como o que leva os habitantes de Bari, lá no "calcanhar da bota" da península itálica, a defender como mantra que "Se Parigi avesse il mare, sarebbe una piccola Bari", rsrs...

Para que a similitude defendida pelo saudoso Jockymann não fique totalmente desautorizada, vale a pena recordar um evento "parisiense" no centro de P. Alegre, ainda que um tanto desmerecedor das nossas qualidades de bons anfitriões. Ocorreu em maio de 1953, quando o Charles Trenet apareceu na capital para algumas apresentações. No final da mini temporada estava prevista apresentação dele num espetáculo vespertino de domingo. Creio que foi no palco do Cine Rex, já desaparecido, embora haja quem defenda que foi no Imperial, este ao lado do Clube do Comércio. Quando chegou a hora, o Trenet achou o público presente muito exíguo e quis eximir-se de fazer o espetáculo, gerando uma crise com empurrões que foi desembocar numa delegacia de polícia, em meio a apupos da plateia frustrada e na presença de um Trenet meio desvairado a bradar, je ne chante pas..., je ne chante pas... Na segunda-feira seguinte, dia da semana em que à época o Correio do Povo não circulava, a Folha da Tarde encarregou-se de manchetear o episódio na capa e apresentar matéria no miolo.

Janer, a tentativa de contribuição acima foi feita dentro do pressuposto que, como já dei umas dez voltas em voltas do sol a mais que as tuas, para usar tua feliz expressão, devo ter vivenciado P. Alegre também com uma antecedência assemelhada, se comparado pelo menos aos anos de início da tua.

Abrs.

Saul Gil